sábado, 14 de agosto de 2010

Em Falso

          As calças estavam sujas, lama seca, os pés descalços. A camiseta branca de algodão, também suja, parecia encharcada de suor. A sensação de calor daquele homem piorava sobre um colchão nu, esponja cheia de pó, pegajosa, áspera. O suor vertia o álcool a que cheirava o corpo. Era silêncio e fogo aquela pocilga perdida no deserto aberto de um mato baixo e seco. O sujeito, cujo nome se não sabe, chamava-se apenas de o Paraguaio. Bandido? Mendigo? Santo? Se ignora. Mas a ferida profunda na coxa direita ardia como um ferro quente, suportada apenas pelo efeito tardio da embriaguez. Uma garrafa de cana praticamente vazia sugeria que a bebida lhe permitiu um sono abrupto, uma espécie de graça decidida no afastamento da morte, era dormir ou morrer com a dor. Acordara o Paraguaio, doente como um bicho, lentamente, tentando reconhecer alguma coisa, fracassava, o corpo doído o desconcentrava inteiro. Um casebre de um só quarto, madeira crua e telhas de zinco, a garrafa de cana, uma bacia, um par de botas imundas e um fogão à lenha abandonado e revestido de ferrugem. Era dia, sol a pino, pelas frestas chegava aquela luz incendiária e o som estridente das cigarras, o Paraguaio chegou perto de um dos vãos e perscrutou o entorno, o cenário se compunha do nada, porém, uma estrada de terra batida indicava o caminho para algum lugar. Ele sabia que sair dali era preciso, a ferida infeccionaria em algum tempo, estava confuso e exausto, sedento como um cão, e além de tudo, procurava sem explicação a razão daquela miséria. Um motor de carro fez-se ouvir brevemente, logo silenciado, supostamente o vento o levava intermitente em outra direção, logo retornava, o Paraguaio prestes a sair foi ao vão da porta conferir, o automóvel vinha na direção da casa devagar, não era compreensível, talvez a condição da estrada, talvez a calma do motorista, talvez a busca quieta de alguma coisa naquelas paragens. O Paraguaio estava acuado, duvidando entre a necessidade do socorro e o perigo iminente – no entanto desconhecido -, um sentimento vago de ameaça e medo; o carro se aproximou até estacionar em frente a casa, longe, cem metros talvez, mas próximo o suficiente para suceder o encontro daquele homem desafortunado que amanhecera ferido e do qual se sabia nada, além de um falso nome. Desceram dois homens do auto, da casa só se podia avistar figuras mudas e deduzir de lá o que se passava distante, os caras pareciam conversar, discutir o próximo passo, mas o que se notava era a inatividade principal da situação, da mesma maneira misteriosa que andaram obstinadamente até ali e aquietaram-se diante da casa, o Paraguaio nada fazia, olhava como que aturdido os passantes e de sua toca não sabia se previa predadores ou parceiros. Já se passava quase meia-hora, a sede do Paraguaio o estava secando, já percebia algo podre em sua perna, mas parecia ter uma força de pedreiro o desvalido; notou que o calor impiedoso começara a incomodar os homens lá fora, tornaram-se mais impacientes, movimentavam-se mais ligeiramente, embora quisessem sugerir que o incômodo não os acometia. Insinuaram um avanço repentino, um dos homens se debruçou sobre a janela do carro e ressurgiu do interior com duas pistolas, entregando rapidamente uma delas ao companheiro, seguiram em direção a casa. Na metade do caminho um deles assustou-se num grito apavorado e raivoso, merda!, merda!, espera!, disse ao outro, agora surpreso, pararam os dois. O primeiro deles, seguindo caminho diverso – em trilha no mato nunca se repetem as mesmas pisadas do que vai à frente – acabava de ser fisgado por uma urutu camuflada naquele mato seco, serpente típica daquele terreno e na hora mais propícia de abastecer sua natureza com o calor terrível do sol. Naquele entretempo, o Paraguaio de imediato acorreu-se no resto da garrafa de cana, segurava-a como um terço, bebia goles minúsculos como se fossem rezas profundas, tremia. Quando tornou novamente a ver os visitantes, alguma coisa já havia mudado, a destinação dos caras estava confusa, a mistura do calor aberrante e do veneno injetado num deles transformara o plano, já se sabia menos ainda o que poderia acontecer. O que ainda restava imune sacou a pistola e disparou três vezes contra a serpente, em seguida tentava acudir o ferido, enquanto volta e meia endereçava os olhos na direção da casa como que pressentindo a presença de alguém sem a convicção do pressentimento, logo saiu de seu estado aparentemente decidido e seguro para um misto de inquietude e vacilo. O comparsa começava a sentir os efeitos, a garganta estreitava e os batimentos começaram a acelerar, e o local da injeção, aqueles dois pequenos núcleos de morte, já davam sinais de apodrecimento no tecido. Estirado no chão, pedia ajuda, por favor, me tira daqui!, já demente; de pé, o outro fora possuído de algum disparate, paralisado como um mármore.
          Mas não havia como agir friamente debaixo daquele sol, eles estava enlouquecendo. Desatinado, o homem saiu de seu estado de torpor, sacou mais um vez a pistola e disparou outros três tiros no parceiro, certamente não fora piedoso, estava fora de si, num inferno. Nesse momento, o Paraguaio não acreditava no que via, seu destino seria uma bala na cabeça, um animal desesperado e impotente, um ser no abatedouro. O homem começou a carregar o morto de volta ao carro, Paraguaio era um espectador fantasma e continuava a testemunhar o inacreditável, chegando ao carro, o homem abriu o porta-malas e antes que depositasse o cadáver ali, já exausto, retirava um outro corpo de lá, parecia o de uma mulher, pernas e mãos amarradas, um pedaço de pano cerrando a boca, desacordada, pois não se trataria um morto com aquele cuidado, ao menos não aquele homem. Deitou-a na sombra rala que fazia a carroceria, jogou o morto para dentro e baixou à força o alçapão de lata. Nada parecia acontecer como aquele desgraçado imaginara, haviam suportado tanto tempo debaixo daquele sol, certamente não invadiram a casa de pronto para que se certificassem que se tratava de um lugar ermo, tamanho esforço para ter, em má hora, um cadáver no porta-malas. Nem suspeitava da presença do Paraguaio que aproveitara a maior distância do homem para procurar algum pedaço de ferro ou coisa assim no interior do fogão. Encontrou coisa alguma, apenas uma brecha, uma esperança, se é que assim se pode dizer. Atrás do fogão havia uma tábua larga, talvez tivesse servido de mesa outrora, estava ali a esconder um enorme vão na parede, o Paraguaio arredou com sacrifício o fogão, afastou a madeira, a ferida na sua coa o carcomia,  o vislumbre da saída o aliviava. Moveu-se afoito, novamente, até a porta da frente, percebeu que o homem trazia a duras penas o corpo feminino em seus braços e uma corrente, era um arraste pesado. O Paraguaio voltou ao vão, lembrou-se da garrafa deixada ao pé da porta, retornou à porta, mais um vez à fuga, não sabia como manter intacta a tábua da mesa, deixou-a de lado, já estando do lado de fora puxou o fogão e o prensou contra a parede, ficara apenas a parte debaixo do vão destapada. Paraguaio estava fora da casa, mas longe, muito longe de estar livre. Em seguida, a porta estourada, os dois visitantes adentravam aquele curral em febre, Paraguaio podia sentir o cheiro da fêmea, era um suor perfumado e forte, ainda que a paisagem fosse enfermiça, ele não evitou de excitar-se. Mas logo sobreveio a presença do homem, ofegante e desembestado, como se não soubesse agir. Acorrentou a mulher aos pés do fogão, e se recostou ao lado. Fez-se um silêncio plutoniano. Três almas banidas. Naquele instante preciso, os três estavam de olhos fechados. Descansaram. Em falso.
          Não tardou o homem a se mexer, fitou a mulher, conferiu o cadeado ainda de joelhos e levantou-se. O Paraguaio ouviu o ranger do que sobrara da porta, temeu ser descoberto por uma inspeção do sujeito, acalmou-se, os passos do homem se afastavam dali, certamente se dirigia ao carro, e deu-se o previsto. Logo se ouviu o motor e a partida. O estômago do Paraguaio estava roído, a boca era um agreste. Estava em nervos. Decerto aquele homem livrar-se-ia do cadáver e dentro em breve voltaria a dar conta de sua prisioneira. O Paraguaio sabia que era hora de andar, antes de partir, decidiu espiar a mulher pelo vão destapado, arrepender-se-ia profundamente. Era uma jovem de cabelos castanhos e olhos de cor verde, feições delicadas e expressão adolescente, respirava extenuada até enxergá-lo. O paraguaio era dotado de mandíbulas brutas, sobrancelhas largas e olhos escuros, mas havia naquele rosto alguma doçura matuta, apesar da rudeza. Fora inevitável o desvario. A jovem convulsionava com olhos de socorro, o suor acrescido de lágrima era como sangue escorrendo no rosto, feria o próprio corpo contra o chão extraindo uma força  desconhecida. O Paraguaio viu-se como um porco-espinho encurralado, aquele horror e a perspectiva nula de tirá-la da alcova o deixavam sem escolhas, deu as costas e partiu. Todavia, evitou a direção da estrada com receio de que o bandido retornasse de repente, escolheu uma gama de eucaliptos que apareciam não muito distante, faziam um triângulo perfeito com a casa e o acesso à estrada defronte, sendo que esta encontrava em curva longa mas acentuada o conjunto de eucaliptos. O agora desertor sentia a presença de um cadáver novamente, sua perna cuspia pus e a desidratação era fatal, conseguiu alcançar a floresta, era fim de tarde, o seu crepúsculo parecia o mesmo do dia, não era sensível a ponto de chorar, mas seu corpo, involuntariamente, lubrificava os olhos com o resto de líquido que lhe sobrava, não queria morrer. Por alguma força estranha, como que reencarnado, decidiu que faria de si um santo naquela noite, o milagre de chegar a estrada arrastando-se, pois caminhar já não era possível, e assim o fez, ora com uma das mãos, ora com a outra, revezando entre a garrafa de cana e o capim que o servia de corda, alcançou a estrada como se chegasse ao céu, deitou-se de costa, a noite era clara e plena. Entre seus olhos e a maravilha daquele teto estrelado, transparecia feito uma película luzente os olhos da jovem, absortos nos seus, cheios de esperança. O Paraguaio ouviu o som das sirenes, o canto dos grilos, deitou o último gole de cana e exalou o cheiro do álcool pela última vez. Logo passaram os carros por ali. O Paraguaio restou.

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