quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Eu sou um ditado impopular



Eu sou a mosca sem cavalo, sem bandido.
Sou o que rouba e não faz.
O que não mata e nem fortalece
Eu sou quem espera e nunca alcança.

Eu sou aquele que prefere dois pássaros voando.

Eu sou o cão que preza pelas ovelhas e
ainda assim não o querem por perto.
O meu mundo não dá voltas.
Depois da tempestade vem outra tempestade.

Em terra de cegos eu tenho os dois olhos
e o que faço é chorar.
Não importa quantas vezes eu aprenda a andar
de bicicleta. Eu sempre esqueço.
Um grande amor não tem cura. Nem tudo passa.


Eu sou o último que ainda será o último lugar.



domingo, 20 de novembro de 2016

Ainda bem que as letras são finitas



A
manhã eu acabo
Bem sabe o bandido
Casa comigo?
Domingo eu deslizo
E quem sabe espero
Fomos bem felizes
Gostamos de gemer e de gostar
Hoje pesam as horas
Inteiras e incertas
Jogam e jazem
Luzes e lágrimas
Meu amor maior,
Não diga não nem menos e muito menos nunca mais
Ontem ousamos demais
Pena não ficar pendurado nos teus pelos pra sempre
Quase sempre queremos
Rir e depois não ruir
Sempre o mesmo sabor de saudade
Tantos tropeços
Um único acerto
Valeu ter visto você despindo a blusa
Xadrez e aquela chuva no teto de
Zinco

(Ainda bem que as letras são finitas
Porque os domingos nunca terminam).






quinta-feira, 17 de novembro de 2016

XVII




Hoje é o dia do último capítulo,
Da última cena
De um filme que já terminou
Hoje é o dia do último flash,
Da última estrela
De uma noite que já se apagou
Hoje é o dia da última lembrança,
Da última espera
De um inverno que já hibernou
Hoje é o dia do último sonho,
Da última presença
De um quarto que desmoronou
Hoje é o dia do último cortejo,
Da última centelha
De um idiota que já tombou

Hoje é o dia do último dia
Da última vez
De todas as vezes
De uma vez por todas
De todos os dias e meses
Do futuro que já passou.


domingo, 13 de novembro de 2016

Andróide




Antes eu cheguei a pensar que você era um andróide
Depois achei que era só uma questão de sorte
Agora já posso confiar em você,
Porque sei que teus olhos são completamente falsos.

É bastante útil ser um robô, talvez
A memória é só um bolo de dados
Os rumos mudam com apenas um chip
Os sonhos são um erro do sistema, que pena.

Mas nem tudo é perfeito, eu vi
Certa vez o algoritmo falhou
Na tela dos teus olhos era o Amor
Quem estava ali

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Enigma




Hoje eu morri como uma abelha
do ser pleno ao nada
no raio e luz de um tapa!
- vibrante, estridente, ligeiro.

Morri como quem sabe seu último dia,
seu último voo.
Morri melhor!
O sol fez-me mais sensível e carinhoso,
meu último pouso
na coroa da flor e da vida.

Deixei meu nome
suspenso. -
Terão de haver-se com a dor desse pêndulo.

(Terão de esquecer da felicidade o porquê).


domingo, 21 de agosto de 2016

Dia 21




hoje quando olhei-me no espelho
eu vi a pluma da saudade.
o ar limpo da manhã, a luz lilás e clara, o vigor das mãos,
não bastavam.
senti que a ilharga da mesa e o caibro da sala tinham também a mesma voz
do rangido
antes de estalar, rompiam-se na infinitude
da pequenez
e as fibras minúsculas
da presença grunhiam.

hoje, estar de pé não bastava
senti o poente ter mais cedo comigo
e tive medo de não estar
fez-se um mapa de ruas vermelhas
na pequena vila dos meus olhos,
mas haviam postes de luz dourada

eu vi teus olhos de tungstênio
eu vi nascer a noite como se a noite
houvesse implorado a nascer
teus passos eram uma meninice do mundo
e deixavam sobre as ruas o brinquedo
do teu rastro

tanta doçura entrepôs-se ao espelho,
estava longe a hora do sossego
e perto demais teu olhar.

sopesei a pluma da saudade,
era de suportar, afinal
já estou velho demais para não saber a hora certa de ruir


domingo, 8 de maio de 2016

Microestória de amor

Nunca se sabe quando é amor. Mas o amor sempre sabe. Quando foi mesmo a primeira vez que a vi? Não sei. Talvez encostada no mesmo balcão de bar, talvez ao cruzar as mesmas escadas da faculdade, talvez sentada na mesa de um café enquanto eu caminhava no fim da tarde ou na noite que a vi flertar com seu futuro ex-namorado. Quando foi a primeira vez que ouvi sua voz? Talvez ela pediu um isqueiro numa noite de chuva e samba, talvez quando ela apresentou um trabalho num seminário da faculdade ou talvez numa vídeo-reportagem sobre uma marcha pelos direitos humanos. A primeira vez que a toquei foi num sonho, meu braço encostou no dela, estávamos deitados no chão, um ao lado do outro, sem nunca nos termos apresentado; quando senti o meu braço no dela, me apaixonei. Assim, sem razões ou com todas as razões se anulando mansamente, assim, arraigada e decididamente forte, assim, clara e maravilhosamente, como um tolo, a-pai-xo-na-do. A resposta também estava ali, num sorriso leve e completo, florescente, alçado pelo olhar mais carinhoso naquela mudez castanha e perfeita, donde se quer ao mesmo tempo ficar pela eternidade e sair correndo, acordar, anunciar como se fora os primeiros raios de sol que a manhã nasceu amorosa, colorida, invencível em sua beleza. Entre o braço dela e o meu, uma ponte ínfima por onde se contrabandearam todos os nossos desejos, um pedaço de chão onde semeou-se o destino, ao rés do qual abriu-se a vitrine de nossos paraísos mais singelos, o gosto pelas frutas amarelas, pelas viagens da América do Sul, pelos museus de arte moderna, o amor pelas Letras e pelo afeto ancestral de todos os cães vira-latas. Mas fora apenas um sonho. Dela eu sabia o nome e a profissão, nada mais. Talvez um pouco mais. Eu sabia de sua preferência por botas e coturnos, calças largas, a sua predileção por mantas de lã, estampa xadrez, chapéus tipo centenário e óculos de armação felina; sabia do seu gosto pelo fogo e pelo vinho; sabia da sedução que lhe incitava os ventos, os cânions, as florestas. Eu sabia do seu jeito de parar com as mãos nos bolsos, de não estacionar os pés, do seu jeito de limpar as lentes sempre sujas do óculos, o jeito de manchar a borda do copo de batom, de sempre tropeçar em alguma coisa e de manter a bagunça sobre a escrivaninha rigorosamente por tempo indeterminado. Talvez ela goste de andar de bicicleta, eu não tenho certeza; mas tenho de que ela adora andar sobre rodas. Talvez ela goste da França, mas eu tenho certeza que ela ama Portugal. Talvez ela goste de Pessoa, mas de Manoel de Barros e Virgínia Woolf ela não escapa. É só o que eu sei.
Nunca se sabe quando é amor. Mas ela soube. Assim que leu este prefácio. Nesse exato momento ela deslizou sobre as rodas que tanto amava, sobre as voltas que a trouxeram até mim. A gente sabe. Mas não sabe ainda. Eu não sei. Mas o amor sabe.      

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

É só




A felicidade é só uma camada de gelo fino
por baixo, apneia e frio
em cima, algazarra
ao redor, a mãe na sala e o filho caído

A calma é só uma cortina
do lado de dentro, a automutilação de uma poetisa
lá fora, um funk alegre trepida
no porão, no porão só o que não respira

A providência é só um fio segurando um touro
atrás, um campo limpo e a graça do vento nas bétulas
à frente, um bando de moscas
longe dali, Bispo do Rosário costura um outro nas sombras

A satisfação é só o vazio de um tanque aquático
durante, os arrepios do acéfalo
depois, nem um pio
só se escuta o estertor das orcas





quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

(sem título)




debaixo de camadas e camadas
de sorte e hábito
encontra-se a cripta onde guardo
minha pequena máquina de Morel

a máquina de superar ausências

não sei como se constrói
não se perguntem
leva tempo, e com o tempo,
vai-se uma leva de amores,
e com essas setas então vazias,
vai-se o tempo de se fazer perguntas frias

também esqueço de escrever sobre mim,
a máquina sabe-me por onde descreve-me
como o lobo e a neve, como o capim e a flor,
como a vida infinita de Turguêniev

mas às vezes a terra treme, a máquina emperra

a alma geme