sexta-feira, 20 de agosto de 2010

a decadança

não é um poema
pode virar a página,
desligar o monitor

é um vento,
um vento, a calma

das coisas felizes
o movimento do ar, tranquilo
a brisa não abafa, nem resfria
arrepia
o invisível, onde começa?

(passou o ano da morte 
e agora dobra o infinito)

o dedo mínimo,
a curva dos olhos
                   , onde começa?
canino, ecoa num piscar, amando-
te, todas as coisas, senão
não estou lá, é escravo o lugar
parapeito para o mar
para-raio, não para não, senão
eu paro de sonhar

terça-feira, 17 de agosto de 2010

000.000,00

está na hora escrita
imediata h. de escrever min.
na evocação
na encarnação
no voo
da canção

na arrebentação
a carne
do refrigerador
do congelador
de sangue
o mangue de tinta negra
a regra, a pedra, a hidra
morta

a rua, a sina,
a folha branca
albina
banal
carnal
heroína, puro sal
ruína

da televisão, da visão
do intelecto
do bisão

sábado, 14 de agosto de 2010

Em Falso

          As calças estavam sujas, lama seca, os pés descalços. A camiseta branca de algodão, também suja, parecia encharcada de suor. A sensação de calor daquele homem piorava sobre um colchão nu, esponja cheia de pó, pegajosa, áspera. O suor vertia o álcool a que cheirava o corpo. Era silêncio e fogo aquela pocilga perdida no deserto aberto de um mato baixo e seco. O sujeito, cujo nome se não sabe, chamava-se apenas de o Paraguaio. Bandido? Mendigo? Santo? Se ignora. Mas a ferida profunda na coxa direita ardia como um ferro quente, suportada apenas pelo efeito tardio da embriaguez. Uma garrafa de cana praticamente vazia sugeria que a bebida lhe permitiu um sono abrupto, uma espécie de graça decidida no afastamento da morte, era dormir ou morrer com a dor. Acordara o Paraguaio, doente como um bicho, lentamente, tentando reconhecer alguma coisa, fracassava, o corpo doído o desconcentrava inteiro. Um casebre de um só quarto, madeira crua e telhas de zinco, a garrafa de cana, uma bacia, um par de botas imundas e um fogão à lenha abandonado e revestido de ferrugem. Era dia, sol a pino, pelas frestas chegava aquela luz incendiária e o som estridente das cigarras, o Paraguaio chegou perto de um dos vãos e perscrutou o entorno, o cenário se compunha do nada, porém, uma estrada de terra batida indicava o caminho para algum lugar. Ele sabia que sair dali era preciso, a ferida infeccionaria em algum tempo, estava confuso e exausto, sedento como um cão, e além de tudo, procurava sem explicação a razão daquela miséria. Um motor de carro fez-se ouvir brevemente, logo silenciado, supostamente o vento o levava intermitente em outra direção, logo retornava, o Paraguaio prestes a sair foi ao vão da porta conferir, o automóvel vinha na direção da casa devagar, não era compreensível, talvez a condição da estrada, talvez a calma do motorista, talvez a busca quieta de alguma coisa naquelas paragens. O Paraguaio estava acuado, duvidando entre a necessidade do socorro e o perigo iminente – no entanto desconhecido -, um sentimento vago de ameaça e medo; o carro se aproximou até estacionar em frente a casa, longe, cem metros talvez, mas próximo o suficiente para suceder o encontro daquele homem desafortunado que amanhecera ferido e do qual se sabia nada, além de um falso nome. Desceram dois homens do auto, da casa só se podia avistar figuras mudas e deduzir de lá o que se passava distante, os caras pareciam conversar, discutir o próximo passo, mas o que se notava era a inatividade principal da situação, da mesma maneira misteriosa que andaram obstinadamente até ali e aquietaram-se diante da casa, o Paraguaio nada fazia, olhava como que aturdido os passantes e de sua toca não sabia se previa predadores ou parceiros. Já se passava quase meia-hora, a sede do Paraguaio o estava secando, já percebia algo podre em sua perna, mas parecia ter uma força de pedreiro o desvalido; notou que o calor impiedoso começara a incomodar os homens lá fora, tornaram-se mais impacientes, movimentavam-se mais ligeiramente, embora quisessem sugerir que o incômodo não os acometia. Insinuaram um avanço repentino, um dos homens se debruçou sobre a janela do carro e ressurgiu do interior com duas pistolas, entregando rapidamente uma delas ao companheiro, seguiram em direção a casa. Na metade do caminho um deles assustou-se num grito apavorado e raivoso, merda!, merda!, espera!, disse ao outro, agora surpreso, pararam os dois. O primeiro deles, seguindo caminho diverso – em trilha no mato nunca se repetem as mesmas pisadas do que vai à frente – acabava de ser fisgado por uma urutu camuflada naquele mato seco, serpente típica daquele terreno e na hora mais propícia de abastecer sua natureza com o calor terrível do sol. Naquele entretempo, o Paraguaio de imediato acorreu-se no resto da garrafa de cana, segurava-a como um terço, bebia goles minúsculos como se fossem rezas profundas, tremia. Quando tornou novamente a ver os visitantes, alguma coisa já havia mudado, a destinação dos caras estava confusa, a mistura do calor aberrante e do veneno injetado num deles transformara o plano, já se sabia menos ainda o que poderia acontecer. O que ainda restava imune sacou a pistola e disparou três vezes contra a serpente, em seguida tentava acudir o ferido, enquanto volta e meia endereçava os olhos na direção da casa como que pressentindo a presença de alguém sem a convicção do pressentimento, logo saiu de seu estado aparentemente decidido e seguro para um misto de inquietude e vacilo. O comparsa começava a sentir os efeitos, a garganta estreitava e os batimentos começaram a acelerar, e o local da injeção, aqueles dois pequenos núcleos de morte, já davam sinais de apodrecimento no tecido. Estirado no chão, pedia ajuda, por favor, me tira daqui!, já demente; de pé, o outro fora possuído de algum disparate, paralisado como um mármore.
          Mas não havia como agir friamente debaixo daquele sol, eles estava enlouquecendo. Desatinado, o homem saiu de seu estado de torpor, sacou mais um vez a pistola e disparou outros três tiros no parceiro, certamente não fora piedoso, estava fora de si, num inferno. Nesse momento, o Paraguaio não acreditava no que via, seu destino seria uma bala na cabeça, um animal desesperado e impotente, um ser no abatedouro. O homem começou a carregar o morto de volta ao carro, Paraguaio era um espectador fantasma e continuava a testemunhar o inacreditável, chegando ao carro, o homem abriu o porta-malas e antes que depositasse o cadáver ali, já exausto, retirava um outro corpo de lá, parecia o de uma mulher, pernas e mãos amarradas, um pedaço de pano cerrando a boca, desacordada, pois não se trataria um morto com aquele cuidado, ao menos não aquele homem. Deitou-a na sombra rala que fazia a carroceria, jogou o morto para dentro e baixou à força o alçapão de lata. Nada parecia acontecer como aquele desgraçado imaginara, haviam suportado tanto tempo debaixo daquele sol, certamente não invadiram a casa de pronto para que se certificassem que se tratava de um lugar ermo, tamanho esforço para ter, em má hora, um cadáver no porta-malas. Nem suspeitava da presença do Paraguaio que aproveitara a maior distância do homem para procurar algum pedaço de ferro ou coisa assim no interior do fogão. Encontrou coisa alguma, apenas uma brecha, uma esperança, se é que assim se pode dizer. Atrás do fogão havia uma tábua larga, talvez tivesse servido de mesa outrora, estava ali a esconder um enorme vão na parede, o Paraguaio arredou com sacrifício o fogão, afastou a madeira, a ferida na sua coa o carcomia,  o vislumbre da saída o aliviava. Moveu-se afoito, novamente, até a porta da frente, percebeu que o homem trazia a duras penas o corpo feminino em seus braços e uma corrente, era um arraste pesado. O Paraguaio voltou ao vão, lembrou-se da garrafa deixada ao pé da porta, retornou à porta, mais um vez à fuga, não sabia como manter intacta a tábua da mesa, deixou-a de lado, já estando do lado de fora puxou o fogão e o prensou contra a parede, ficara apenas a parte debaixo do vão destapada. Paraguaio estava fora da casa, mas longe, muito longe de estar livre. Em seguida, a porta estourada, os dois visitantes adentravam aquele curral em febre, Paraguaio podia sentir o cheiro da fêmea, era um suor perfumado e forte, ainda que a paisagem fosse enfermiça, ele não evitou de excitar-se. Mas logo sobreveio a presença do homem, ofegante e desembestado, como se não soubesse agir. Acorrentou a mulher aos pés do fogão, e se recostou ao lado. Fez-se um silêncio plutoniano. Três almas banidas. Naquele instante preciso, os três estavam de olhos fechados. Descansaram. Em falso.
          Não tardou o homem a se mexer, fitou a mulher, conferiu o cadeado ainda de joelhos e levantou-se. O Paraguaio ouviu o ranger do que sobrara da porta, temeu ser descoberto por uma inspeção do sujeito, acalmou-se, os passos do homem se afastavam dali, certamente se dirigia ao carro, e deu-se o previsto. Logo se ouviu o motor e a partida. O estômago do Paraguaio estava roído, a boca era um agreste. Estava em nervos. Decerto aquele homem livrar-se-ia do cadáver e dentro em breve voltaria a dar conta de sua prisioneira. O Paraguaio sabia que era hora de andar, antes de partir, decidiu espiar a mulher pelo vão destapado, arrepender-se-ia profundamente. Era uma jovem de cabelos castanhos e olhos de cor verde, feições delicadas e expressão adolescente, respirava extenuada até enxergá-lo. O paraguaio era dotado de mandíbulas brutas, sobrancelhas largas e olhos escuros, mas havia naquele rosto alguma doçura matuta, apesar da rudeza. Fora inevitável o desvario. A jovem convulsionava com olhos de socorro, o suor acrescido de lágrima era como sangue escorrendo no rosto, feria o próprio corpo contra o chão extraindo uma força  desconhecida. O Paraguaio viu-se como um porco-espinho encurralado, aquele horror e a perspectiva nula de tirá-la da alcova o deixavam sem escolhas, deu as costas e partiu. Todavia, evitou a direção da estrada com receio de que o bandido retornasse de repente, escolheu uma gama de eucaliptos que apareciam não muito distante, faziam um triângulo perfeito com a casa e o acesso à estrada defronte, sendo que esta encontrava em curva longa mas acentuada o conjunto de eucaliptos. O agora desertor sentia a presença de um cadáver novamente, sua perna cuspia pus e a desidratação era fatal, conseguiu alcançar a floresta, era fim de tarde, o seu crepúsculo parecia o mesmo do dia, não era sensível a ponto de chorar, mas seu corpo, involuntariamente, lubrificava os olhos com o resto de líquido que lhe sobrava, não queria morrer. Por alguma força estranha, como que reencarnado, decidiu que faria de si um santo naquela noite, o milagre de chegar a estrada arrastando-se, pois caminhar já não era possível, e assim o fez, ora com uma das mãos, ora com a outra, revezando entre a garrafa de cana e o capim que o servia de corda, alcançou a estrada como se chegasse ao céu, deitou-se de costa, a noite era clara e plena. Entre seus olhos e a maravilha daquele teto estrelado, transparecia feito uma película luzente os olhos da jovem, absortos nos seus, cheios de esperança. O Paraguaio ouviu o som das sirenes, o canto dos grilos, deitou o último gole de cana e exalou o cheiro do álcool pela última vez. Logo passaram os carros por ali. O Paraguaio restou.

domingo, 8 de agosto de 2010

não é difícil

eu falo do tempo


- dá pra abarcar todos os beijos na boca?

as coisas que secretam arrebentam!
pensei que as voltas fossem menores,
e o logo bem maior que a espera
quando crédulo vejo que passa
se vê o liso das coisas, estão todas abertas

encontrei no chão, achei bonito
era isso que diz eu
entre as latas daqueles que riram,
entre a garganta dos que desistiram,
entre ossos
o verniz da passagem, o cheiro

derramei mais, derramado
a pata deste mamute me pesa
olhar para o lado
enquanto estava dito que tudo entregue era pouco
esmurrar as próprias coxas em soluço não adianta
era pouco

- sabe, não existem cinzas que me apaguem!
.
.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

que reluz

(em razão de um pequeno carinho, a uma amiga bem pequenininha)

pepita mínima dourada,
que desconheço,
de algo fosforescente,
às vezes, parece
esconder raramente
o que ama com desespero


dá voltas e voos
e volta ao mesmo tempo,
que reconheço,
de algo mistério ainda puro
um riso claro remédio
uma graça, um apetite libélula
.
.

Kairós, o crônico

pode parecer ópio cantar felicidade em tempos ruins, talvez seja o frio, talvez sejamos nós, nós todos, amigos, talvez a secura do ar enxugue a tristeza inteira, quem sabe as linhas, as lãs de aquecer, os novelos da infância têm fim, eu extenuo no problema bobo de olhar o céu e perguntar, alguém estelar consente às noites responder que sim, os açudes verdes estão quietos, a palavra dá voltas no silêncio, penso: aquele canto esquecido cultivou a pirâmide de pó que o esconde, os segundos são egípcios, o tempo pode engarrafar o álcool, mas não pode engarrafar os bêbados d'alguma coragem, de minar as correias do medo e da melancolia; avisa que é de se entregar, diz o primeiro, ya no puedo reaccionar, diz o segundo... um terceiro, ardentemente cru, diz que é pra viver, em seguida, diz que é pra morrer, não-contraditoriamente para a overdose da identidade; é bonito ver tudo nisso ainda bonito, e não se encerrar, e reagir, e dormir outra vez que o corpo deixa de ser luta e sonha de novo e sempre a tez do mar tranquilo que o fez vida, futuro desperdício início da cria de um mundo solar, é dar as costas ao vento que faz andar, é um estupor aqui, gelo ruído debaixo das peles serpentes, zelo das gentes que fazem o vermelho de marte sossego, entardecer não é fácil, tudo isso é óbvio, nada ainda é uma volta por cima, a severidade das horas, o momento exato, a contradição, de estar em cacos, nem de todo estilhaçado, não ligar-se nem desligar-se, paralisado


vai dizer ao coração do louco que um é do outro apenas metáfora...