segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Verdes ignorâncias

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À noite as palavras assazem-me, muitam-me
(sobre um copo pequeno e dose graúda de canha,
vezes redobradas pelo esvaziar, a troca
do vazio de um em outro, fartando a falta com nada)

Multiplicado em silêncio: teu deserto, teu silício,
tuas colinas de sal, teu rei oásis, teu ácido,
tua onda revolta, teu estouro, tanta
e insuportável sede, tantos os revanches da calma

Sorver o leite doce que a manhã do corpo verte
E suspirar no canto dos olhos as minhas cicatrizes: Tantas agonias.
Elas ventam molesta e suavemente,
onde se arrastam, onde o poente passa,
onde nada tem lugar

Sabem estes cordéis amarrar o instinto
desabitar... Tecer redemoinhos novos,
novos caminhos, novos outros sem mim felizes,
Sabem teus anéis desanimar, desalmar, arruinar
sabem deixar as vagas e correr ilesos, sabem-se negros
sabem-se livres, onde nada fica atrás, onde nada resta
onde a boca nega

Onde são teias que a solidão alimenta,
Eu sou uma aranha carente.
Lambendo as poças das quais tantas vezes me tiraste:
Tantas vezes fui mosca
Tantas outras ninguém!

Da moléstia de ser cigano, o abandono:
urdido em volts carinhosos que bebi no teu colo. Sim, outra vez tu:
como pôde descobrir o cão debaixo dos meus olhos?
E dispor da lágrima aguda que... Sim, eu choro. Já sei.

E não saberia embriagar-me de coisa outra.
De mim um outro em mim que não olvida, não espera:
Senão tuas entranhas, perfumes, pedaços. Tua fome.
Senão uma simples calha, um gafanhoto, um lençol
E o que treme e seca até quando é alívio que se derrama.
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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Das histórias inúteis

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Já não havia manchas de sangue: mais
só resquício, memória pálida,
alguma guerra outrora marcada e viva
de onde sobrevim exausto, definhado

As folhas secas do chão qual espinhos
cochilavam as feridas da queda
E as feras espreitantes desdenhavam
a morte desvalida de um animal daninho

Fraco, nem de alimento servia aquele fim
Se comido, viria à tona vomitado
Se deixado, viria impregnar com podridão
A epiderme úmida daquela selva nutriz

Nem de morte, nem de cólera...
Apodreci num sonho, num encanto semi-heroico
Retorcido até o limite dos ossos,
Acordei sob luz de fada e pérola

Era feto, emudecido, de carne desnuda
Suja. Coberta já de um leite iluminado
Adivinhando a água pura, prenunciada
No barro macio que meu corpo retornava

Tal vigor ressurgiu naquela outra vida,
que um despudor viril subjugava a mácula
das lutas, o rastejar da sorte, o ínfimo da dor
Apunhalava em si qualquer ingratidão

Serviu-se de mim banquetes a todos os fins,
dos começos beberam-me uma esperança nervosa
Daquele mito invadi o rosto dos dias,
rasgando o canto dos lábios até doer o riso

Não rendi, não fora rendido.
De um homem que contava histórias:
liquidadas de luz
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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Dos choros que te ensinei a rir

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Das vezes que teus olhos caíram,
e eu os segurei com os meus: diziam
te tortures nunca mais

Teus ocasos feridos...

Achar-te na sala sob a lâmpada fraca
O preto desbotado a verter dos teus mirantes:
eu quis que a lógica fosse ontológica
e a tua tristeza a mais pura das contradições

Eu escorria por dentro, junto a ti
com as mãos perdidas, eu perdia
Até o meu esforço teu cansaço chamar-se ajuda,
sabendo ter com o silêncio a última chance

Depois da chuva, teu sorriso de volta, cúmplice do meu 
Éramos um caminhão de garrafas tombado na rua
Sentados naquela ciranda de cacos
aprendi a amar, ensinando-te a rir

Outras tantas desaprendendo a morrer de frio
Porque teus trejeitos... Teu azul,
a dispersar do poente o vermelho negro...
Porque as pontas dos teus dedos sabiam tudo

Sonhando-me em teu colo, mil vezes no futuro
As estrelas-do-mar choravam em nossos tapetes
Frágeis como uma cordilheira de corais,
Já sabíamos o bastante: Depois de dar as mãos
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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

o mais simples é a flor do que se não diz

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ver as coisas todas livres
aceitar do tempo a passagem

aceitá-la com graça, sem rancor
- como um presente, um carinho -
aceitar a vida

(as cinco linhas mais difíceis)

a noite fria ainda responde, calada
e meu coração quente se agrada e cresce
quando a nuvem esconde a luz morta da estrela
e logo o cinza se esvai,
deixando a luz novamente viva,
daquele brilho mágico e raro,
o meu peito aprendiz e tolo... sossegar

a solidão mais completa, a melhor solidão
é a do amante completamente apaixonado,
que pode acariciar até o espinho mais doído:
que tudo passa, que tudo finda,
que o amor fere e namora a vida

e porque te amo com a cegueira dessa vida
o pior dos deuses já pode rasgar meus olhos...
eu te enxergaria, te encontraria
por muito, muito tempo...
no tempo dessas luzes que não morrem -
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domingo, 7 de novembro de 2010

O dia em que me apaixonei.

Saí de casa pra ir na feira comprar o salame e a cerveja do meu Lizarrazu. Não, não é meu cachorro, é meu marido. Marido marido! não é, mas a gente se ajuntou faz tempo. Quando digo o nome dele as pessoas pensam que é macumba. Eu digo não é não,  tem até um jogador francês com esse nome. É chique, ora. A Cirlene, minha vizinha, dá risada. Essa é descontraída, peida até estendendo roupa. Passei por ela no caminho da feira. Não tinha salame, quer dizer, tinha, mas 'tava mole, eu gosto quando é do duro. Mas a cervejinha eu trouxe, e com esse calor, mãezinha, a cerveja é o céu aqui. No caminho de volta dei uma paradinha no salão da Neide pra saber do Rubinho, marido dela. Já depois de velho, arrumou uma caxumba; e não é que a peste recolheu, 'tá com os bagos inchados o pobre. Mas como diz a Neide, não é problema, Rubinho já 'tava aposentado daquela região. Fui-me embora. Quando dobrei a esquina, bem em frente a vendinha do seu Neco, foi aí que aconteceu o acontecido. Não sei o que me deu, só Deus pra saber, mas tive uma tremedura nas pernas e um disparo no peito, me apaixonei por um burro, na hora. Aquilo sim foi macumba. Nem posso explicar uma coisa dessas. Mas o bicho era forte, tinha um cheiro de força, era um perfume fresco de cenoura, me embebedei naquilo. E tinha os olhos caídos, uma beleza abatida, uma meiguice calejada. Não pude evitar, agarrei a cabeça do burrito, passei a mão naquelas orelhas charmosas e dei um beijinho nas fuças dele. Ele respondeu parecendo amolecer as patas...
Viver é isso, logo passa. Olhei pro lado e ninguém tinha visto a loucura. Voltei pro meu Lizarrazu. Abandonei o burro, apaixonada. Acho que foi a burrice mais linda que já fiz.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

De mais nada que soube dizer

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Penso em meus avós, não sanguíneos, aqueles ancestrais
semi-humanos, semianimais, quando se vestiam de peles
como terá sido, no mais despretensioso instante, não se sabe
                                                                                       [como
se um tropeço, ou fruta despencada na fronte, ou bicho
                                                                                       [desajeitado
o corpo contraiu-se em riso, os músculos desfaleceram
                                                                                       [abertos
de um jeito novo, um novo ser aprendia a rir, sabiam-se
alegres, e talvez mais sábios, mais completos e amenos

Tão distante esse tempo, e tão próximo agora, virgem
tempo que pode dar voltas, alçar voo e retornar
Voltar no primeiro riso infantil, todas as vezes, disso sabemos
Mas imagino a primeira vez de todas elas, primordial
E tenho o sentimento de que breve e passageiro existe algo 
                                                                                        [perfeito
Sobre a terra desses gigantes, um desvio supremo, um vício
                                                                                        [eterno