segunda-feira, 26 de outubro de 2009

é isso

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a palavra surta
e espalha uma voz absoluta
rouquidão da lucidez,
embaraço da loucura solta
do abstêmio, a sicuta
é o orgulho da razão

o grande gênio cospe
o que de dentro o entope
vaza o fluido que o aviva
e vivo é móvel outra vez
do crédulo, a ma-fé
é denegar a própria criação

mais uma para o violão

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nada, assim, seria um acordo
do amor, um desaforo
suplincando como um tolo...

nada, assim, seria uma rasteira
da paixão, uma besteira
terminando sem que você queira

tudo pode como num assalto
vindo do olhar incauto
vitimar o próximo amanhecer

tudo pode vir ao desagrado
malogrando o ser amado
que não quer se despedir

versinho das 3:00 a.m.

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eu tenho na insônia
uma decaptação insólita:
perco a cabeça
de olhos despertos,
chego a um desencontro encontrado
na luz daquela estranha escuridão
não virá em horas
a hora certa de dormir
enquanto resta o feixe raro,
a sombra fúnebre, o latido largo
dos próprios cães em mim
cedo a cabeça,
mas sigo em pé...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A amante

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Texto do livro Os amantes, coletânea de cartas anônimas organizado pela professora de Letras e Literatura Portuguesa, Dorotéia Decamerão, do núcleo de pesquisa literária Oduesp.


Querido M.

não deverei poupar-te de minhas palavras, cobro-me dia a dia o dever de confessar a ti toda a minha verdade, uma verdade bastante dura e triste de ser dita, mas sem o que não posso mais viver tranquila. Há algum tempo, logo extasiada em teus braços, já sofro de um abatimento sôfrego de não estar contente, de imaginar repentinamente tuas calças e camisas vestidas, tua aparência reta de despedida, e teu adeus breve e sem culpa alguma. Sofro com o desejo impune de tua partida, um adeus que de agora em diante, desejo de uma vez por todas que tenha sido o último. A amizade só perdura enquanto dura o desconhecido naquele que se admira, e como um raio, dei por conta que há tempos teus mistérios estavam restritos a tua carne, não me encantavam mais tuas futuras idéias, teus vícios imprevisíveis, tuas surpresas de amante, teus gracejos desconcertantes e coisas do tipo; o único desconhecido que amarrava meu desejo em ti era o limite do gosto dos teus músculos, dos teus olhares sobre mim, do descabido, que como uma luva de cetim, cabia no teu gemido derradeiro. E agora nada, nada investe minha ignorância de ti, as dobras da tua carne parecendo mais lisas do que nunca, eu caio num desespero dormente, sem razões que contrariem o tédio do teu amor. Devo advertir que não existirá sequer a discussão do fim, pois não me encontrarás no quarto e na cama que foram nossos por tanto tempo, parti sem rumo, e lá restarão apenas uma cama desfeita em cuja memória descansa a minha insatisfação, um guarda-roupas vazio, as tuas cartas que não importam mais e o silêncio de um túmulo onde jaz o nosso amor e amizade. Agora e talvez para tristeza tua, não tens mais que justificar desavergonhadamente tuas faltas e atrasos, disfarçar o meu perfume sem disfarce em ti, e beijar tua esposa inssossa sem a mínima vontade de fazê-lo, além dos ares de ladrão covarde e arrependido e da comiseração indecente que tens para com ela. Algum dia, contigo morrerá a pena daninha que tens dela e de ti mesmo, e poderás, assim, descansar sem mérito algum da tua pobreza de espírito. Não culpo a ti de nada que sucedeu entre nós, pois de nada és culpado de ter sido por tão longo tempo como pão e água para mim, dessa miséria também fui cúmplice, e de riquezas na alma andava vazia. Teu desencanto não vem da supressão da indecência em mim, ainda continuo bastante viva e quente, embora teu fogo agora escasso já não alimente mais o meu ardor; meu sonho não é mais simplesmente ter as persianas fechadas e as pernas abertas à espera do teu júbilo egoísta em riste, apenas isso. afora tudo que pude agora dizer, nada espero, abri as janelas, bati a porta, e deixei-te para trás.
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Nota sem valor: o livro não existe,
a autora tampouco, o texto é deste que vos fala.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

deixa a fome comer o nome da carne

meu corpo, noite adentro e alta, é um albergue de ilusões; tão sólido quanto meus suspiros, tão sereno quanto a paciência das punhaladas que vão cuspindo meu sangue em cores fortes, meu pesadume de carne serve de abrigo aos meus sonhos; esse corpo tem um peso estranho, rodiado de melancolia e força, ele persiste ávido nas próprias fantasias: a boca, que dispensa a nuca e ri, como ri a criança no escorregador, ao sentir que falta a gravidade no estômago no mesmo instante em que a pele e os olhos e as extremidades do corpo excitam o próprio ser; essa boca a cair nos ombros de boca aberta, faminta com aquela pele alva e lisa de sossego e mácula, uma brisa torpe aguçando-se na espinha, e o toque redentor de minhas presas salivadas com teu gosto interdito. a fogueira, em noite aberta e livre, queimando aquela solidão mesquinha com gravetos da mais pura liberdade, com faíscas tórridas de silêncio áureo, não o silêncio morto e ainda morno do quarto de dormir, nem o silêncio vivo e berrante das tavernas e esquinas, mas aquele eco dos deuses gritando a vitória do mais breve instante e presente da própria alma, refletida no fogo, ao perfume do mato, ao sabor do vento, com o brilho da noite amarrada às honras da mais nobre das lentes, o fundo esvaziado da mais puta das garrafas, aquela que encharca de vida o agora e já de minha feliz infâmia. a rua, labirinto errante das passadas mais ingênuas e esquecidas, como uma lata quicando sonora até deitar-se morta na sargeta eu ando vadio sobre ela, desvalida e também safada em cada beco tem-se um gole dos segredos dela, assim é serena a intensidade das madrugadas em desabrigo, alentado pelo céu de estrelas; nas janelas das mocinhas mais pudicas e abonadas deixo um recado sincero de esperança: do meu suor não beberás, do meu amor não provarás, do tédio congugal que te espera, morrerás. das calçadas garimpo a riqueza sem matéria do meu reino insone, e como outra coisa não sou que passageiro, desapareço como ópio na última baforada da noite, e então é dia claro que me espera. as dores, pequenas cortesãs que acompanham minha nobreza decaída e semeiam aflitas no seu ventre bandido o meu destino tragado e arredio, seria eu, abandonado por estas ninfas, uma alma sem corpo, hiroshima sem bomba, um vazio sem medo, um credo sem mistérios; é prenhe a sabedoria dessas moças, desfazendo lentamente o meu conforto com carícias assassinas, são elas exímias bailarinas traçando o desenho ébrio da minha tragédia, cantam sempre na despedida uma elegia sem pranto,  deixando no sótão de mim um eu de mim mesmo novo. tudo, assim, é a tempestade do sono, universo sem dono dos sonhos da vida, pequenos faunos dançando na superfície aberta dos cristais verdes que orbitam em mim, e deixam ver a luz do dia morrer fria no eterno retorno do fim. meu corpo, noite adentro e alta, é um cemitério de paixões.

sábado, 10 de outubro de 2009

Alma! Vá, dor!

pássaro da primavera

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nesta hora...
em que teus seios palpitarem quentes nas minhas mãos
e tua boca seca, desconcertada, disser Sim sublimando o Não
nesta hora
o Universo inteiro vai sorrir sem jeito e gemer baixinho
a Terra vai contrair o ventre e gozar faminta
lanhando as costas do
Destino
nesta hora
nossos continentes já terremotos
farão o fogo denso no leito dos Infernos
sonhar com o frescor das nuvens
nesta hora...
o instante fez-se Mar
.
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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

a sombra das sobras

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não quero sangrar-te alegre...
nem o negro plangear dos meus olhos
deseja o reflexo da tua pupila...


minúsculas são as teias de sossego
que sustentam o silente degelo dos dias
o orvalho, ah, da tua tez ausente, é sina

o tempo é náufrago...
a correnteza tépida das veias
a vogar sem rumo no instante

o tempo é noturno...
pequeno silvo recluso no peito:
esperança é dança da espera
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009


*









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por que ela não cai?
se é róseo e turvo o horizonte
a quem estende os pequenos braços?
se o vento leva quem restava
por que ela sorri?
se o outro lado do mundo ela não vê
será que ela pede para voar junto...
descansar seus bracinhos num último grito
ou... vê que a força que leva embora
sopra também na sua direção

é sonho o que o vento traz de volta...




* tempestade - ana camelo
fonte: http://anacamelo-naif.blogspot.com/

terça-feira, 6 de outubro de 2009

étrange... (première leçon)

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 .
teus rebuscados anos de vida me fazem inspirar um ar puro de junventude
teu vernáculo me contenta com luz inescrutável
o que tu vistes e amaldiçoastes, bendisseste e repugnaste?
tuas rugas são vindimas flertando minha garganta,
a sabedoria nobre de uma vida infame...
quem sou eu para te elogiar sem a sensualidade de um pagão,
comunista inveterado a invetarar a desrazão
tua pele acarvalhada desdobra uma esperança pueril...
fizeste estrangeira a província de tuas passadas
e toda a minha breguice não contentará tua distância
minhas infâmias girarão como reús inocentados
alegres, vibrantes entusiastas, talvez doentes
tu tens o tom da desgraça, da infância ilustrada e embebida de gáudio
deixa o plágio da ternura para mim, teu desgraçado e seguidor
teu contente cantador de perjúrios e sarcasmos
quem é capaz de conter o medíocre que nos rege?
nada... mas risonho é o deus que te espera,
como a floresta dispensa exageros ao vento,
cospe o sumo divino do gasto,
deita sobre a Terra, verde, sufocando o concreto banal... efêmero ruído dos pequenos
faria um elenco interminável de sons a dizer-te sim!
mas não aguento a surdez das palavras
calo, sem dizer adeus, gritando em mínimos vocábulos de gratidão...
segue... segue teu sotaque de outrém, desconhecido como o múrmurio de além...
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(à mon maître...)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009





















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difícil não desvelar a luta que me torna ser
quando me assalta a tristeza,
e a sua força se dobra frente a alegria do outro
quando a luz que vêm de fora,
refresca o mofo que me namora
difícil suportar a fragilidade,
como uma peça de mármore despedaçada que puseram de pé...
por vezes, se depositarem a mão calada sobre o meu ombro,
basta para chorar...
noutras, como talhadeira, a alegria que não é minha, tornando-se... encontrará a nascente de minhas rochas
e torno a embaçar as vistas na mesma moeda, em ouro...
como as palmeiras de madagascar, ilhadas, resta morrer
para deixar a vida? não... é a dádiva das flores
para agradecer o vento, o mar, a chance...
tudo o que não é... mas virá
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