quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

profissão

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Tenho algumas maneiras boas de apinhar as letras da minha alma, poderia ser escritor... E até ganhar alguns tostões... Mas não tenho talento nem me apaixona saltar nesse devaneio. Eu tenho dom mesmo é para ser um sentidor, mas não hão de me pagar por isso...
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

minimum

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B: É necedade amar?

R: Não é grande imprudência.

B: Metafísico estais.

R: É que não como.


In: Cervantes, M. Dom Quixote. Soneto: Diálogo entre Babieca e Rocinante. Tradução. Conde de Azevedo; Visconde de Castilhos. Ed: eBooksBrasil.com
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

dança

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há dias eu corria sobre uma estrada negra, corredor do inferno. ao largo e longe uma pequena árvore enchia meus olhos d'água, ela dizia em eco que eu era parte de tudo: do verde, do caule, do monte, da distância, do fogo. naquele inferno, senti que a gota que brotava dizia alguma coisa sobre todas as outras, coisa que dá sentido a tudo que cala e só diz em solidão. minha fraqueza tem um tônus que desconcerta, meu estômago é esfinge, repetindo o mesmo frio no medo e no amor, sou refém. com o tempo, a caminho do cimo, aprendo a ser honesto comigo, cada vez mais, assim como minto cada vez com mais exatidão, meus fantasmas mesquinhos já não enganam como outrora, o medo de não poder voltar já não mais convence, meu pequeno eu é uma ferida seca, vocês entendem isso? deito pra dormir acordado por uma miríade esquizofrênica, que surta meu descanso até o paroxismo da imperfeição, e quando a saga delirante finda, eu sonho com o impossível, ainda refém. beiro o gozo com um único beijo, toda realidade condensada nos lábios, parte renegada (a culpa alheia), parte concedida (a sabedoria da sorte), parte consagrada (a verdade ri detrás do véu de todas as nossas mentiras), vocês entendem isso? o sonho, quisera a razão não fosse assim, não é infração, o sonho não é moral; não é necessidade, o sonho não é corpóreo; o sonho é a própria liberdade do mundo, um dândismo que perfuma a terra, que enxota com o sopro da coragem a pequena mosca da nossa hipocrisia, sou ninguém: a culpa que visita a alma é um hóspede num quarto de assassinos, por quê tanta insônia nessa noite de séculos? eu sei, o sono é uma arte do corpo, mas o corpo hoje é apenas um balcão de negócios. sou réquiem...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

é isso

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a palavra surta
e espalha uma voz absoluta
rouquidão da lucidez,
embaraço da loucura solta
do abstêmio, a sicuta
é o orgulho da razão

o grande gênio cospe
o que de dentro o entope
vaza o fluido que o aviva
e vivo é móvel outra vez
do crédulo, a ma-fé
é denegar a própria criação

mais uma para o violão

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nada, assim, seria um acordo
do amor, um desaforo
suplincando como um tolo...

nada, assim, seria uma rasteira
da paixão, uma besteira
terminando sem que você queira

tudo pode como num assalto
vindo do olhar incauto
vitimar o próximo amanhecer

tudo pode vir ao desagrado
malogrando o ser amado
que não quer se despedir

versinho das 3:00 a.m.

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eu tenho na insônia
uma decaptação insólita:
perco a cabeça
de olhos despertos,
chego a um desencontro encontrado
na luz daquela estranha escuridão
não virá em horas
a hora certa de dormir
enquanto resta o feixe raro,
a sombra fúnebre, o latido largo
dos próprios cães em mim
cedo a cabeça,
mas sigo em pé...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A amante

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Texto do livro Os amantes, coletânea de cartas anônimas organizado pela professora de Letras e Literatura Portuguesa, Dorotéia Decamerão, do núcleo de pesquisa literária Oduesp.


Querido M.

não deverei poupar-te de minhas palavras, cobro-me dia a dia o dever de confessar a ti toda a minha verdade, uma verdade bastante dura e triste de ser dita, mas sem o que não posso mais viver tranquila. Há algum tempo, logo extasiada em teus braços, já sofro de um abatimento sôfrego de não estar contente, de imaginar repentinamente tuas calças e camisas vestidas, tua aparência reta de despedida, e teu adeus breve e sem culpa alguma. Sofro com o desejo impune de tua partida, um adeus que de agora em diante, desejo de uma vez por todas que tenha sido o último. A amizade só perdura enquanto dura o desconhecido naquele que se admira, e como um raio, dei por conta que há tempos teus mistérios estavam restritos a tua carne, não me encantavam mais tuas futuras idéias, teus vícios imprevisíveis, tuas surpresas de amante, teus gracejos desconcertantes e coisas do tipo; o único desconhecido que amarrava meu desejo em ti era o limite do gosto dos teus músculos, dos teus olhares sobre mim, do descabido, que como uma luva de cetim, cabia no teu gemido derradeiro. E agora nada, nada investe minha ignorância de ti, as dobras da tua carne parecendo mais lisas do que nunca, eu caio num desespero dormente, sem razões que contrariem o tédio do teu amor. Devo advertir que não existirá sequer a discussão do fim, pois não me encontrarás no quarto e na cama que foram nossos por tanto tempo, parti sem rumo, e lá restarão apenas uma cama desfeita em cuja memória descansa a minha insatisfação, um guarda-roupas vazio, as tuas cartas que não importam mais e o silêncio de um túmulo onde jaz o nosso amor e amizade. Agora e talvez para tristeza tua, não tens mais que justificar desavergonhadamente tuas faltas e atrasos, disfarçar o meu perfume sem disfarce em ti, e beijar tua esposa inssossa sem a mínima vontade de fazê-lo, além dos ares de ladrão covarde e arrependido e da comiseração indecente que tens para com ela. Algum dia, contigo morrerá a pena daninha que tens dela e de ti mesmo, e poderás, assim, descansar sem mérito algum da tua pobreza de espírito. Não culpo a ti de nada que sucedeu entre nós, pois de nada és culpado de ter sido por tão longo tempo como pão e água para mim, dessa miséria também fui cúmplice, e de riquezas na alma andava vazia. Teu desencanto não vem da supressão da indecência em mim, ainda continuo bastante viva e quente, embora teu fogo agora escasso já não alimente mais o meu ardor; meu sonho não é mais simplesmente ter as persianas fechadas e as pernas abertas à espera do teu júbilo egoísta em riste, apenas isso. afora tudo que pude agora dizer, nada espero, abri as janelas, bati a porta, e deixei-te para trás.
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Nota sem valor: o livro não existe,
a autora tampouco, o texto é deste que vos fala.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

deixa a fome comer o nome da carne

meu corpo, noite adentro e alta, é um albergue de ilusões; tão sólido quanto meus suspiros, tão sereno quanto a paciência das punhaladas que vão cuspindo meu sangue em cores fortes, meu pesadume de carne serve de abrigo aos meus sonhos; esse corpo tem um peso estranho, rodiado de melancolia e força, ele persiste ávido nas próprias fantasias: a boca, que dispensa a nuca e ri, como ri a criança no escorregador, ao sentir que falta a gravidade no estômago no mesmo instante em que a pele e os olhos e as extremidades do corpo excitam o próprio ser; essa boca a cair nos ombros de boca aberta, faminta com aquela pele alva e lisa de sossego e mácula, uma brisa torpe aguçando-se na espinha, e o toque redentor de minhas presas salivadas com teu gosto interdito. a fogueira, em noite aberta e livre, queimando aquela solidão mesquinha com gravetos da mais pura liberdade, com faíscas tórridas de silêncio áureo, não o silêncio morto e ainda morno do quarto de dormir, nem o silêncio vivo e berrante das tavernas e esquinas, mas aquele eco dos deuses gritando a vitória do mais breve instante e presente da própria alma, refletida no fogo, ao perfume do mato, ao sabor do vento, com o brilho da noite amarrada às honras da mais nobre das lentes, o fundo esvaziado da mais puta das garrafas, aquela que encharca de vida o agora e já de minha feliz infâmia. a rua, labirinto errante das passadas mais ingênuas e esquecidas, como uma lata quicando sonora até deitar-se morta na sargeta eu ando vadio sobre ela, desvalida e também safada em cada beco tem-se um gole dos segredos dela, assim é serena a intensidade das madrugadas em desabrigo, alentado pelo céu de estrelas; nas janelas das mocinhas mais pudicas e abonadas deixo um recado sincero de esperança: do meu suor não beberás, do meu amor não provarás, do tédio congugal que te espera, morrerás. das calçadas garimpo a riqueza sem matéria do meu reino insone, e como outra coisa não sou que passageiro, desapareço como ópio na última baforada da noite, e então é dia claro que me espera. as dores, pequenas cortesãs que acompanham minha nobreza decaída e semeiam aflitas no seu ventre bandido o meu destino tragado e arredio, seria eu, abandonado por estas ninfas, uma alma sem corpo, hiroshima sem bomba, um vazio sem medo, um credo sem mistérios; é prenhe a sabedoria dessas moças, desfazendo lentamente o meu conforto com carícias assassinas, são elas exímias bailarinas traçando o desenho ébrio da minha tragédia, cantam sempre na despedida uma elegia sem pranto,  deixando no sótão de mim um eu de mim mesmo novo. tudo, assim, é a tempestade do sono, universo sem dono dos sonhos da vida, pequenos faunos dançando na superfície aberta dos cristais verdes que orbitam em mim, e deixam ver a luz do dia morrer fria no eterno retorno do fim. meu corpo, noite adentro e alta, é um cemitério de paixões.

sábado, 10 de outubro de 2009

Alma! Vá, dor!

pássaro da primavera

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nesta hora...
em que teus seios palpitarem quentes nas minhas mãos
e tua boca seca, desconcertada, disser Sim sublimando o Não
nesta hora
o Universo inteiro vai sorrir sem jeito e gemer baixinho
a Terra vai contrair o ventre e gozar faminta
lanhando as costas do
Destino
nesta hora
nossos continentes já terremotos
farão o fogo denso no leito dos Infernos
sonhar com o frescor das nuvens
nesta hora...
o instante fez-se Mar
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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

a sombra das sobras

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não quero sangrar-te alegre...
nem o negro plangear dos meus olhos
deseja o reflexo da tua pupila...


minúsculas são as teias de sossego
que sustentam o silente degelo dos dias
o orvalho, ah, da tua tez ausente, é sina

o tempo é náufrago...
a correnteza tépida das veias
a vogar sem rumo no instante

o tempo é noturno...
pequeno silvo recluso no peito:
esperança é dança da espera
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009


*









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por que ela não cai?
se é róseo e turvo o horizonte
a quem estende os pequenos braços?
se o vento leva quem restava
por que ela sorri?
se o outro lado do mundo ela não vê
será que ela pede para voar junto...
descansar seus bracinhos num último grito
ou... vê que a força que leva embora
sopra também na sua direção

é sonho o que o vento traz de volta...




* tempestade - ana camelo
fonte: http://anacamelo-naif.blogspot.com/

terça-feira, 6 de outubro de 2009

étrange... (première leçon)

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 .
teus rebuscados anos de vida me fazem inspirar um ar puro de junventude
teu vernáculo me contenta com luz inescrutável
o que tu vistes e amaldiçoastes, bendisseste e repugnaste?
tuas rugas são vindimas flertando minha garganta,
a sabedoria nobre de uma vida infame...
quem sou eu para te elogiar sem a sensualidade de um pagão,
comunista inveterado a invetarar a desrazão
tua pele acarvalhada desdobra uma esperança pueril...
fizeste estrangeira a província de tuas passadas
e toda a minha breguice não contentará tua distância
minhas infâmias girarão como reús inocentados
alegres, vibrantes entusiastas, talvez doentes
tu tens o tom da desgraça, da infância ilustrada e embebida de gáudio
deixa o plágio da ternura para mim, teu desgraçado e seguidor
teu contente cantador de perjúrios e sarcasmos
quem é capaz de conter o medíocre que nos rege?
nada... mas risonho é o deus que te espera,
como a floresta dispensa exageros ao vento,
cospe o sumo divino do gasto,
deita sobre a Terra, verde, sufocando o concreto banal... efêmero ruído dos pequenos
faria um elenco interminável de sons a dizer-te sim!
mas não aguento a surdez das palavras
calo, sem dizer adeus, gritando em mínimos vocábulos de gratidão...
segue... segue teu sotaque de outrém, desconhecido como o múrmurio de além...
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(à mon maître...)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009





















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difícil não desvelar a luta que me torna ser
quando me assalta a tristeza,
e a sua força se dobra frente a alegria do outro
quando a luz que vêm de fora,
refresca o mofo que me namora
difícil suportar a fragilidade,
como uma peça de mármore despedaçada que puseram de pé...
por vezes, se depositarem a mão calada sobre o meu ombro,
basta para chorar...
noutras, como talhadeira, a alegria que não é minha, tornando-se... encontrará a nascente de minhas rochas
e torno a embaçar as vistas na mesma moeda, em ouro...
como as palmeiras de madagascar, ilhadas, resta morrer
para deixar a vida? não... é a dádiva das flores
para agradecer o vento, o mar, a chance...
tudo o que não é... mas virá
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terça-feira, 29 de setembro de 2009

insolente

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 - O Sr. poderia nos dizer o que é arte?
 - Sim, obviamente. Tanto quanto você poderia me dar uma vida eterna (risos). Estou brincando, Senhorita, me perdoe. A arte para mim... (um longo suspiro, os olhos fixos em nada) É o enigma sensível das formas... Honestamente, não sei dizer mais nada sobre isso.
 - E o que ainda o faz escrever, Sr.?
- ... Eu busco o sentido de minha escrita na necessidade do ato de escrever, e o encontro necessariamente aí, embora não saiba dizê-lo...

(Ele ainda vive, aos 123 anos... )
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mais uma de todos nós (para o violão)

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somos deuses, somos cócegas
somos magma, somos cólera
somos cínicos, hipotéticos
somo kitchs e patéticos

somos sede, somos blefe
arrependidos do cacete
invictos, convictos
interditos e falsetes

somos pérola, somos pálidos
analíticos e hiperbólicos
somos poetas, heréticos
erráticos, fanáticos

somos um quarto de hóspede
um fado fantástico
somos um grito quimérico
apaixonados e diabólicos

somos a tônica retrógrada de tudo...
*


Nos acostumamos a ver as coisas como apocalipses brilhantes. Um saudoso amanhecer de inverno, árido, e eternamente coberto de sonhos, que sobra em si e deita... adormecido na primavera, quente e colorida, infinita, talvez, ele deixa de ser... Damos nossos restos de ontem como minúsculos banhos de amor, sábios desfazedores de si, somos ofegantes malabaristas cujo último respiro é de contentamento e graça. Embebedados pelo mundo, uma sôfrega terra radiante, voz solene que cobre e cura nossa afável carcaça... retorna revoltosa sobre nós com sua calma, com a sua alma e canto. Com a pele que guarda a imperfeição da memória em cada dedo, em cada tato, tocamos a mesma pele no exato momento em que ela envelhece, marejada, gravura de uma centena de gozos e danos, todos eles calados agora, agora, agora...


* Arthur Rubinstein plays Liszt, "Liebestraum n°3"

sábado, 19 de setembro de 2009

Loki (a letra para tua voz)

Se a loucura não esperar por mim
Quem será?
Se a loucura não estiver ali
Eu sei lá...
Se a tristeza não me colorir
Vou chorar
Se o vendaval não destruir
O que restar
Da minha vida o sol e a cor
Vai ficar...
O jeito, o sal do mar, silêncio...
Ah...

Para Talita

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Trenzinho Caipira



Saudade é uma mistura do domingo com o barro, com a birra, com a angústia de um silêncio eterno por vir: - pai, joga a bola pra mim! Nada suporta o peso quando os joelhos dobram pra arrastar a morte pelo quarto afora; nada fecha a porta quando o estampido explode e sangra o quarto de dormir que acorda, a cama feita, o dia desfeito, o lenço negro que cobre o que não mais se esconde. Agora chora pra estancar o grito, reza pra ensurdecer o alarido dos demônios em volta: - não deixa o menino ver! Não haveria braços estendidos que pudessem impedir a foice, dissipando o atropelo dos coices que a vida dá; não haveria voz pra esvaziar aquele tambor que rufava de dor pela última vez; não haveria abraço pra calar aquele cansaço: - vai ser melhor assim, mãe! O teto rachou com aquele arrepio de Deus, a mãe segurava a cria com uma das mãos, enquanto na outra batia o coração em desespero, esfolado pelo medo que dá ao ver o pior cair de frente tal como espelho, como disparo que empedra os olhos vermelhos, como um relho que sela o devaneio raro do sossego... Todos aprendem a cruzar as pernas do tempo: - vem meu filho, agora papai vai descansar em paz!

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Canção popular

Teus podres e panos,
teus olhos muçulmanos me fazem virar
teus dotes de rapina,
gotas de morfina me fazem Bagdá

Tuas serpentes e dunas,
Teus becos e bombas e ruas...
São ecos rebeldes do Mar

Teu grito insolente, tua casta indecente
Teus braços de Hera, teus traços...
Sou bicho, sou quente, sou gente, sou lixo
Sou tua Quimera, sou teus estilhaços  

Tua sede assassina,
Tua doce ruina - teus mortos...
São todos destroços depois de amar

Anticristo

Eu amo aos tarros, fazer o quê?
Vamos brincar de Roma: - Eu sou Nero, e você?

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ciranda

Tenho nove anos... e alguns pensamentos que nem sei dizer. Meu pai bebe, minha mãe é reticente e reza... Quando sente dor, ela finge que não sente, pra fingir que eu não sinto que ela mente. De manhã, vou na escola, e emburreço; à tarde, subo na árvore e esqueço; à noite na cama, com os os olhos bem abertos, como dois grandes lagos escuros de medo, recomeço. Nem sei por que eu penso... que minhas pálbebras são duas guilhotinas que degolam minha dor de tudo. Durmo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

minuto

(contender sobre tua dor...
depois uma oferta de suicídio

desmentido teu segredo em pó
ver teu dó em paraíso)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Partícula V: o passeio

Natalie ainda estava um pouco contagiada dos rumores da rua, mas sabia que os próximos passos a traziam para um ser bastante silente. Entrou, e logo deixou escapar uma daquelas interrogações triviais, que correspondia ao lugar comum de onde chegara:
- Roman, como vai? - disse a moça, com seus olhos felinos e distraídos.
Depois de alguns segundos demorados de observação calada, a quietude de Roman se pronunciava com o pesadume costumeiro:
- Minha cara, você sabe, sou daqueles que deixaram a si mesmo para trás, como o inverso da metáfora das víboras, a carne viva cristalizou algures, enquanto a carcaça seca continua móvel!
Natalie respondeu imediatamente:
- Oh, Roman Woolgar, você está a cada dia melhor, se continuar assim logo terá uma estátua em frente a pousada: aqui jaz mais um homem absoluto! Que tal um passeio? O dia está agradabilíssimo, seco e ligeiramente frio, desafie a secura do dia com a sua e veremos quem sairá melhor, hein.
Roman aceitou o próprio sorriso sem jeito a desreipeitar sua sisudez, e cedeu:
- Está bem. Saiba que esse convite não é um grande desafio, minha escuridão não teme a luz, você sabe, e todo a minha sábia melancolia não resiste a sua inescrupulosa criancice!
Roman deixou a xícara sobre o mármore encardido da pia, procurou rapidamente algum dinheiro na gaveta da escrivaninha, pegou um casaco de veludo no armário, e estava pronto. A distância entre esses pontos naquele cômodo confortavelmente incômodo permitia a rapidez, era mínima, como a constância de Roman. Saíram os dois, felizes daquele ar limpo, também contentes da companhia verdadeiramente recíproca, Natalie era implacável em seu tato com Roman, extraia sorrisos daquele rosto amarrado como se fossem pérolas, Roman devolvia quietude e charme - elogios indiretos a presença daquela mulher. Assim, seguiram até os arredores do cais, queriam a luz do sol mais plena, sem os desvios de concreto do centro da cidade; nada como um passeio vulgar, a cabeça saturada de leveza, e um horizonte largo à espera.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Partícula IV: Roman Woolgar, ainda

Roman seguia com as mãos praticamente imóveis sobre a mesa, os pés frios traziam algum incômodo, mas não o impediam de fixar suas idéias em si mesmo. Nada, quase nada a fazer, um nada rodeado apenas pelo múrmurio da rua, bastante vago, e o ruído confuso da máquina de costura não muito longe, no quarto ao lado, talvez - de uma jovem muda que ali habitava por ora, um tanto estranha, parecia, mas bastante simpática em sua mudez. Uma introspecção leviana o entretetia nessa hora, como poderia prorrogar tamanha resignação, tamanha hesitação, assim, tão conscenciosamente, como se medisse e aceitasse a cada segundo o exato peso de suas pernas, o ouriçamento imprevisto de seus pelos, a mediana temperatura do corpo, e toda a série de incalculáveis pormenores que movem o universo inteiro sem que nos faça a menor diferença; esta, pois, na vida de Roman, tem sido a incorruptível verdade entre um segundo e outro. Uma sorte de etecéteras invisíveis acompanhavam aquela solidão mestiça, Roman negligenciava a idiotice e o destino, nisso era um homem admirável e inteligente, assim escapava de uma banalidade morta, de uma simplicidade estéril; costurava suas vísceras diariamente, por vezes deixando algum rastro de verme, e não vacilava em sua superficialidade, quando esta lhe era possível, já que nosso curioso Woolgar era um poço desconhecido. Como num salto, um belo descanso de si apareceu, era Natalie quem batia à porta, já pela énesima vez desde o apagar de suas idéias vãs. - Vamos, Roman, sei que está aí, sinto cheiro de chá, seu bobo, abra!

domingo, 19 de julho de 2009

23:59

Cinco mil e seiscentas milhas:
lembrança
prenúncio
vazio. -
O Natal é um acordeon que não pára.

hábito cristalino

pequena musa (adormecida)
teus olhos de Lispector não mentem
uma cifra anti-platônica da paixão,
[difusa, bela e futil e omissa]
desenhando a sombra de uma gata suicida

não tens mistério, diz tua fúria pálida.-
amolação lenta da tua foice (morta?)
recortando a forca do tédio dos teus pesadelos,
ao pé de uma dor tranquila...

rasga com tuas unhas vermelhas meus novelos de seda
e me dá a gosto um corte farto de sangue
ou deixa inocular minha dose de afeto
na tua pele - tua neve de outono - ofegante

e já recobrado do golpe, do gozo festejo
o Édipo torpe que burlou grades
[e arredou mãos cheias de dedos]
pra que o cerne desalmado dos teus medos
fizesse cor e lis dos teus alvéolos mortos, e beija-flores.

Bukowskiana

Alô. -
Um xis bacon,
Uma puta,
E os meus sonhos de volta!

911

Amor
Dor
Saudade
Cadê a saída de emergência,
Crueldade?

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Canção das pedras

Destino, advinha tua fábula, tua cabal realidade. És minha tartaruga-marinha. Majestoso silêncio que arrasta um oceano consigo. Vencedor que levita sobre o solo mais rarefeito, a paciência inconteste de todo o teu peso... Tens graça. Não te tornas um pesadelo por pouco; obstina tua destemida leveza, contra tua metade petrificada, em milhões de rotações terrestres, como se fora um príncipe dos tempos. Tuas crias nascem do risco, um balé de centígrados jogam suas vidas ao calor da fortuna; teus olhos imensos, marejados por natureza, contemplam o lento vagar da vida, e se dispersam, espelhos do mar, em nostalgia descabida. Tua força, mistério, teus braços, império, teus traços, corredeiras do Eterno, tuas vestes, abóbada rochosa que zela os ecos do instinto e do amor. És perfeito na tua dureza, teus temores tem viço, tuas certezas, alegrias. Gigante materno, não és meu Tártaro, contudo, ainda és minha, e até a Morte há de ser.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Bilhete de final feliz

Tristeza,

Saí de casa, não pela porta dos fundos; tive que dar a volta por cima. Deixei a melancolia na gaveta dos discos; o tédio, na caixinha ao lado dos teus remédios. Não deixa de quitar as prestações da indiferença que estão em cima da mesa, e guarda os recibos, pode ser no console da escrivaninha, ao lado dos teus livros de falsa sabedoria. Cuida bem do cachorro (meu Tristão), e não descuida da gata também (tua Isolda). Ainda deixei arrumado teu lugar preferido no quintal, o poço-sem-fundo. O jardim está limpo, não deixa abarrotar de folhas secas, de qualquer maneira, será impossível cobrir tua solidão. Se preferires, não me importo, ainda podes fingir que existo no jantar; põe na mesa dois pratos e engole tua sopa, com pãezinhos torrados que o diabo amassou, se der, consome também tua própria amargura. Aos domingos, podes morrer de fome. Ainda neste inverno, podes usar a lareira, queima tua vaidade com uma boa xícara de chá nas mãos, mas não esqueça de apagar o fogo. Logo a miséria passa, Tristeza, e tu te acostumas com tua saudade mesquinha. Passe bem.

Feliciano

domingo, 12 de julho de 2009

Viagem

A leve crueldade de olhar para trás...
Ruidosa, como a saga rasteira da loucura
A queda do sopro aquecido da aurora leva
A esperança de que as fadas venham tocar na cólera,
Enquanto a noite não vem roubar o surto,
Sonho - devaneio e luto - como o bater de asas e desespero,
Castelo de ases desabando, e o ceú
Brilho - de todas as casas vazias - feito cegueira,
Olhares coesos em anéis de tristeza
De onde a força destes móveis e poeira?
Lá, onde o sangue não seca,
Vivo, como as ondas do Atlântico,
Impiedoso como o inferno astral de Deus
O freio da morte imperra o ruído da alegria que cresce
E nasce, como o zelo que inverte os ponteiros do tempo,
Um sabre que degola a maldade do ventre, e derradeiro,
Sobe a montanha dos dias
Esta lâmina - cópula, crime e fastio - prepara o sacríficio da alma
A calma veleidade do homem -
O fim curioso, sereno e tardio, um querer
Do alvo certeiro que some sem ter
Escrito um poema de adeus - será.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Amor perdido

Hoje - palavra vazia,
Das pedras contadas no caminho
De ninguém...
Soluço, do mofo, espinhos

Detrás da porta, espera por mim,
Amargura morta, despedida: -
Dos gritos que terminam
Escravos da tua ida

E o raio de luz que traz a escuridão?
No canto largado do teu brilho
Dorme o robô da canção,
Amarrado, segue menino nos trilhos...

E quebra, dor que de vez consome
Sonha outro nome!
Deixaste no limo, sera-fim
Um corpo que nunca tem fome de mim.

sábado, 4 de julho de 2009

Um jornal ana-cômico: primeira página.

Há uma década, certos jovens, descobrindo a breguice de um coração partido, silenciavam suas dores nas canções de amor de Renato Russo e Roberto Carlos. Hoje, ao sabor dos ventos de uma nova e imprevisível geração, a juventude se consome em emo-ções. As autoridades poéticas estão preocupadas, diz o superintendente Liriciano dos Reis, "não sabemos em que esse constrangimento pode acabar, estamos preocupados, talvez estejamos diante de um grande infarto de nossas instituições amadoras". Em tempo, alguns manifestantes já esboçam seu descontentamento. Na tarde de ontem, em frente ao Rosário de Lágrimas, uma moçada anacrônica desfilava ao som de pujantes palavras de ordem, "a franja não é o problema, mas onde estão os poemas?".

Ao desmame colossal da vida

Estou no vício. -
A distância roída do vão
Entre amor e solidão...
Meu rebuliço, meu berço.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

À teu coração desnudado, Baudelaire

Tu já caíste morto. Eu sobrevivo. Mas tua forma ávida segue viva e bela em cada brilho meu. A tua angústia, qual a de uma sol poente, é tenra, e acalma a força soturna que verga meu corpo. Tua sina é o tanto de líquido terrestre que arruina o que se dá deserto em mim, tuas frases gozam, teus medos bocejam, teu sêmem poético vinga. Teus imperativos, teu pudor safado, tuas ordens de amor prostituído, que são tuas dores vomitadas senão o ácido que digere meu arraigado torpor? Tu és, para mim, confinado em tua beleza, a meia-estação, a meia-luz, e a solidão inteira. Tua nudez tem o dom de deixar meu repouso fazer abrigo em tuas revoluções; teus maremotos são melodias vagarosas de ninar. És um indivíduo portentoso - as vestes da tua língua revestem o gosto para a glória -, mas não perde a vez de incitar o amor, a prostituição, feito um mar fingindo-se doce para desaguar e sair de si. Meu caro, não tens preço, pois a moeda que te troca é divina. Teus fantasmas tem sabor, tua loucura... razão, teus punhais e penas e broncas tem amigos, e ainda resta, no subúrbio de teus amores, minha fé no que vem de teu subsolo: um aviso celeste, eterno, banido. Tens meu apreço, gênio querido, e tens também já conquistado o furor da minha pena, a recusa das hostilidades imbecis de nossos tempos, o bom-humor custoso de minha bílis, mísera bílis, em riste, alerta. Somos os cordões austeros e esquecidos do futuro, como sobras do sopro que carrega o tempo, somos as carícias reticentes depois que a amante já dormiu. No fundo, somos movediços, e nos olhos, estranha superfície, nos flagram delicados e ariscos. Qual demônio nos guarda, nos aguarda, nos une? Curioso destino que nos embebeda e mata esse de nos tornarmos o que já somos; essa alegria bandida de dizer, e suportar o adeus dito a si mesmo; a quietude infernal de quem sangra desperto, de quem sonha. Não somos aranhas, somos abelhas turbulentas espalhando o mel de nossas muitas almas. E quantos, embasbacados ao redor de si, dirão que fomos infelizes, ingratos, vadios? Os cálculos divinos parecem mesmo insondáveis; mas as cores de tua lucidez nervosa bordam um quadro exato em mim, o teu ardor ainda canta descontente sob a métrica falha dos meus mistérios... Agora, retorna ao teu silêncio, já caíste morto. Eu: sobrevivo admirado!

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Partícula terceira: o espelho

R. Woolgar acabara de chegar em sua pequena casa, de apenas dois cômodos, e muito fria. A escassez da mobília compensava a multidão inteligente que habitava aquela estranha alma. Numa das paredes da sala, ao lado do cabide de entrada, um pequeno espelho, bastante comum, pregado àquela altura desde há muito tempo, decerto por um morador mais antigo, a refletir desafortunadamente, dia-a-dia, a imagem misteriosa daquele homem. Roman Woolgar tinha as feições agudas, as mãos delicadas e longelíneas, sombracelhas negras, e seus olhos eram verdes, fascinantes e verdes, como duas esmeraldas terrivelmente felinas, soberbas, melancólicas. Sua pele era de uma tonalidade árabe, mas sua ascendência, cicatrizando em sua alma, era nórdica, era fria, como um crepúsculo boreal. Roman era muito magro, e ao mesmo tempo muito forte, seus músulos se avivavam facilmente sob a pele, mas o seu ímpeto pouco condizia com esta força, era calmo e reflexivo na maior parte do tempo. Depois de livrar a chaleira sobre a chama, quedou-se sobre uma das duas cadeiras da cozinha, recanto estreito mas agradável daquela mansarda; aguardava descansado, com as pernas cruzadas, as mãos levemente abertas sobre os joelhos, e os olhos fixos na luz tímida que invadia a peça, o primeiro cheiro da essência com morangos e eucaliptos que deixara para ferver, e eis que como seda o perfume lhe tocava o nariz.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Partícula segunda: as máximas

Logo no primeiro passo em direção ao outro lado da rua Roman despedia-se do caminho ordinário, seguia-se daí um daqueles momentos em que somos expulsos de nossa própria morada por fantasias, idéias, utopias, enquanto a casa, obviamente, seguia em sua estada. Roman, então, atravessava e não atravessava a rua. Imaginava ele o objetivo para a vida de um homem qualquer, já que ele, nesse lance de dados, não poderia pensar em si mesmo, pois andava desmaterializado: antes que o Universo ordene que me torne nada mais que uma lembrança, devo jurar que minha vida tem sido uma disputa frágil, feliz e tortuosa em nome da virtude. Sou uma caçador inveterado de máximas, porém, sou também a presa fácil de meus pormenores. Não demorou, entretanto, para que sua carcaça espiritual caísse novamente sobre a sola de seus pés. Avistou o corredor úmido que o levava à caverna moderna que volta e meia habitava. Deixou-se ir.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Brota, agora, a flor clara de três ou quatro minutos felizes de um dia qualquer, para trás... O calor do chá nas mãos perdia-se confusamente no calor do rosto pelo sol; em meus olhos surgiam gotas que recebiam o brilho ofuscante que caía do céu. Que débil razão sopraria as velas desta solidão borrada? Por muito pouco não beijei a boca do universo, e um riso bastante vago trouxe-me de volta ao quarto gélido. Um passo em vão, um a mais, a pisar o leve e puro perfume da memória.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Partícula primeira: um começo

Desdobrando suas idéias, ele pergunta aos psicólogos de hoje onde está o seu espírito, a sua virtualidade, a sua inutilidade. Por quê se ater tão obstinadamente, senão cegamente, ao instante mais fugaz, a ação cravada no presente, a hereditariedade de movimentos em linha reta, apenas? Onde está a imensidão do tempo em ti, cadê teus círculos, pastor de almas perdidas? Perderam a gloriosa largueza e densidade que não têm medida, ou estas jamais foram tuas, esta é a razão da velocidade oca? Ou vazias são essas reclamações do espírito? Neste vagar, ele segue cruzando a rua, nosso mais novo homem do subsolo, Roman Woolgar, rival impiedoso de si mesmo, bem articulado, esbelto na sua melancolia inteligente, em camisa branca bem passada e casaco de terno em linho reles, guarda seus 43 anos de vida, cuja maior parte lutou contra paixões desregradas, sua verdadeira e bendita maldição.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Imagem máquina

Imagine um fio adentrando o centro de sua circunferência craniana na direção do solo. Então ele se reparte na altura dos membros superiores, e também segue na direção do ventre, até se partir novamente para tocar através do túnel de cada perna a extremidade inferior. Aí, exatamente no fim do percurso, a integridade do fio se expande em grampos afiados como uma espinha metálica. De súbito, num corte bruto, o fio inteiro é sugado pela mão de Deus. Eis o teor da necessidade e do chamado absoluto para a virtude humana na terra.

sábado, 18 de abril de 2009

À deriva

O tempo da experiência mais nua é o tempo da contemplação, da paisagem, da situação no tempo, da admiração, somente a plasticidade da arte pode realizá-lo mais perfeitamente, através de qualquer alegoria.