segunda-feira, 31 de maio de 2010

pro-lixo, nem pensar

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chega, do amor não trato mais
agora sou de prego e parafusos -
telhas que não chamam mais goteiras
não tiro mais o sono alheio, é feio, me disseram
a chuva mente que o teto quer chorar
deixa, de sofrer mais ninguém quer saber
agora importa o plátano caído e pisado
o latido acuado do cão perdido
o samba ressentido do velho coitado
será que começar por um lírio bêbado dará um bom poema?
de todos nós o pó interessa ao futuro, que absurdo
o conto resumido do eterno tilintar no frio, não, é febril, não é?
ah, quase me perdi por nessas linhas erradas
a canção já vinha tinta se assanhando sobre o pobre papel
logo eu rio, logo logo depois o mar virá sertão
e da carne vai restar arame e arado e solidão
do teu olho que não brilha, brinca de bilhar, é, comigo
agora só resta aresta, logo vai embora, eu sei, querendo ficar
é sábio (se) enganar, olhar de lado, deixar a roda rodar
nem é tão triste assim deixar pra lá...
nem é tão frio aqui no sul, nem é tão azul o céu
é mais bobagem perder a piada que o amor
é mais amor rir, vai ser rio pra ver o mar, vai lá amar
agora sou de prego e parafusos, peraí
deixa eu apertar o coração, não, deixa pra lá
perdi a chave, fiquei na fenda, fecha os olhos, vou passar
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sábado, 29 de maio de 2010

atende por todos os nomes

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não me farto do amor, nem me furto desse roubo em nós
essa coisa, esse ouro,  esse papel o mais vagabundo
colado na sola dos nossos sapatos
perseguindo até o fim da estrada, como se fosse reles
nosso dia, nossa an-dança, nossa pequena folha rastejante

estamos indo pra onde, parece inquirir o vento
e venta calma, a derradeira brisa no meu rosto exausto
que ao te ver turva o próprio leito e derrama
sobre as mãos nervosas, não, sobre o corpo em surto
o desejo de ser de todas as coisas e teu

cultivamos sem saber do desespero que espera
esse amor do ventre às pontas dos dedos
na fortaleza de uma bola de sabão
não é belo cortejar o sopro que nos estoura?


volta a brisa amena pra secar nossa lágrima escura
e coragem pra nos despedirmos com carinho
faz-se as pazes com a felicidade e o adeus
e a vida inteira se condensa no segredo de estender as mãos

quinta-feira, 20 de maio de 2010

mirei no chafariz, acertei o carrossel: quase paralaxe, não fosse o coração

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se do teu olho, o brilho
fosse uma cama elástica 
eu saltaria de costas
sabendo dos sabres, do mais alto dos edifícios

se do teu rosto, o vermelho
fosse um nariz de palhaço
eu morreria de cócegas
fazendo rir os ossos do meu mais pesado ofício

se teus saltos fossem longe demais
voando sobre pernas-de-pau
eu apertaria até doer meu passo
pra não te perder jamais de vista

se tuas sinas fossem as de um clown
zombando dos velhos e tristes rivais
eu brincaria, na terra, de artista
e no espaço, de poeira e luz e rastro...

terça-feira, 18 de maio de 2010

dois e dois são três

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as coisas em mim, na sua maioria são graves
têm gravidade, são sérias e pesadas
do gênero trágico
muitas vezes épico, heróico
não é nenhuma glória, a bem pensar
ter a textura, o sentido de uma odisséia

você, de outro lado, é um beija-flor, ou borboleta
com certeza, teu nome é haicai da leveza
eu: um caracol

trago o passado inteiro comigo,
sempre presente, tudo ressentido em mil voltas que me pertencem
como a minha própria morada


você gosta dos gostos cítricos, do laranja e do amarelo
minha cor é verde, sou úmido, sombrio, amazônico
você gosta de klee, da limpeza em cores sólidas
eu sou caravaggio, goya
luz tecendo escuridão, negro

dois quaisquer
mas eu prefiro você
truffaut, godot, voz e violão,
rayuela e livro sobre nada
prefiro seu jogo da amarelinha

domingo, 16 de maio de 2010

a f(r)esta

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conhecidos um do outro há tanto tempo, eu de mim mesmo, as vezes nem sei o que dizer-me em dias nos quais não se abre a janela, não se percebe a luz do sol nem se nos desenha a linha de um horizonte. dias em que nos encontramos encerrados, e nos havemos com a nossa própria penumbra. tento, como se não soubesse das regras desta sestrosa brincadeira, a de encontrar algum novo sentido para isso tudo que se chama pequena solidão dos homens. percorro algumas linhas de Cortázar, procuro a calma na melodia de Ramil, tento não correr ou fugir ou esquivar-me do insolúvel presente, do indigesto presente que se embrulha em meu estômago, da incontornável força que nos acompanha taciturna e diariamente e que, amiúde, não nos apercebemos, a gravidade, de cada ideia que insiste em tornar-se real e se agrava em nossa memória, o pesar do corpo e o enrugar das mãos frias e rígidas. que nem todos caiam nessa armadilha délfica é um problema que não me diz respeito, por mais interessante que me pareçam aqueles seres em que predominam os fatos ao invés das ideias, e para os quais os sapos eruditos acreditam que se tratem de seres vazios, e obviamente se enganam em seu equivocado coaxar, pois estes seres factuais a que me refiro são tambores cujos sons estão repletos de realidade. insisto, porém, nos musgos e viscosidades de minha recalcitrante existência crocodiliana, entre a resistência silenciosa e paciente das águas e a solidez arenosa de um leito embarrado de pensamentos. o couro que separa o mais frágil de mim e o resto do mundo é grosso, a gravidade em mim é demasiada, arrastando-me sob uma tonelada de instintos e lampejos filosóficos tão anacrônicos quanto a minha espécie. mas nada em mim seca e careço cuidadosamente, diria mesmo carinhosamente, em manter meus olhos bastante úmidos. em toda clausura é essencial flagrar as aberturas, deflagrar a invisível escamação que nos socorre e com a qual desnudamo-nos divinamente com a possibilidade de uma animalesca renascença, pois, dessa íngreme desolação que agora me ocorre, acabo de furtar-me inteiramente sóbrio, apesar da dor e do enjoo, no exato momento em que, com as mãos estarrecidas, achava-me prestes a desesperar-me, a clamar a deus que desistisse desta tortura, e nesse instante, fez-se um sentido, em nenhum outro lugar senão na palma estendida das minhas mãos, estava ali, naquelas linhas imperfeitas nas quais nada lamentava, nada hesitava, e nas quais algo se desenhava como o horizonte que até então se escondia, eram simplesmente as ferramentas da minha alma que ali luziam, o artesanato da minha própria solidão que ali se deslindava, eu encontrara, finalmente, o instante... o murmúrio ancestral de todos os sacrifícios, meu sangue quente banhando as mãos de meus próprios guerreiros, minha carne agora farta sobre a mesa, e o delírio de uma soberba refeição, a do instante devorando fantasmas.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

sem título

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um velho neste novo mundo. um passageiro experimentando a passagem. muito velho, sabe muito pouco de agir, perde muito tempo em reflexões. muito velho, não enseja nos músculos e nervos a vontade de sair; tampouco despenderia alguma energia para convidar qualquer um a se retirar dali. era sua morada já há muito tempo, a madeira podre da varanda frontal apodrecia amigavelmente já há muito tempo com ele, um dos dois haveria de enciumar-se bruscamente só de imaginar alguma renovação repentina em alguma das partes conjugalmente envolvidas. paus podres suportando telhas velhas, pernas velhas suportando miolos podres, cada um a seu tempo, no seu ritmo, na sua condição apodrecedoramente suportável. o gato raramente andava, apenas a sua cola, já que sempre foi um outro bicho colado ao gato não se sabe por quê; lembra muito os traços da cola dos macacos, porém, muito mais estúpida que esta, a cola no gato não tem razão alguma. já o cão é gente muito diferente, tem todas as razões, é um ser humano perfeito, é capaz de babar e rodear em busca do próprio rabo com toda a autenticidade do mundo, tudo no cão é alienado, nem um vestígio de consciência para assegurar sua vulgaridade, cada coisa acertadamente ao seu tempo mesmo que os tempos na ordem das coisas se invertam. ele pode dar de focinho no pote de água - maravilhoso transtorno - quando o mais preciso era abocanhar a sua bola de estimação, e nada altera a perfeição do seu instante, como nem duas mil explicações humanas poderiam explicar, é como se o cão ao cair de cara na água dissesse a si mesmo era exatamente isso que eu gostaria de fazer. o velho não desfruta do mesmo contentamento, não quer sair, não quer que ninguém o deixe, se deixar está bem, se não deixar, pois bem, assim está. a bola acaba de tocar o gato, lá vem o cão, o cão bate no gato - era exatamente o que o cão gostaria de fazer - o gato não se mexe, a cola sim, a bola também, cai na boca do cão, que segue ritmo canino da sua perfeição. no velho desperta a vontade de um trago de mate, ah, a surpresa, o velho ainda tem vontade, ele imagina o mate, saliva sob a imagem, tem ímpetos quase reais de levantar-se, e quase involuntariamente sente os próprios pés pressionarem o chão, por deus!, assim ele conseguirá! lá vem a bola, logo, vem também o cão, a bola pára na cadeira, o cão certamente não pára, logo, o cão acerta a cadeira - porque ele não quisera outra coisa -, e o velho explode num berro coberto de vontade, mas que cão!, maldito, não se pode mais sossegar, estou cansado, não quero mais nada. silêncio. o grito quase distraiu o próprio cão de sua perfeição, quase nada, logo retornou a ela, disse au-au, apoiou as duas patas bem à frente, a cabeça balançando, a língua pra fora, a bunda empinada, e zapt, em disparada atrás da bola, lá vai ela, ah não, no galinheiro não! a cola do gato só a espiar, o velho a cochilar, o mate a esperar, praticamente nada a acontecer, maldição, que frenesi! há de passar, sem preocupações. e finalmente, algo inexplicável, o pinheiro deixa cair uma de suas pinhas em cima das telhas podres da varanda, um caco se desprende, acerta matematicamente a cola que, desesperadamente, acorda o gato que está colado nela, o velho se assusta e sem pensar, maldito velho!, sem pensar, acaba por ficar em pé, mas a madeira da varanda está podre, o velho abre um buraco com a pressão dos pés e cai, tenta segurar-se no corrimão, mas a madeira da varanda está podre, ora, qual parte não se entende! maldição! o corrimão se parte com o peso do velho podre, e o poste que segurava o teto da varanda podre por seguinte também se parte, e todo o teto podre cai por conta de uma pinha bem em cima do pobre velho! a casa toda cai! o pinheiro, entusiasmado, quase se joga ao chão! o velho morre, a cola morre, o gato colado nela também morre! até que... enfim... sossego! ah, não! lá vem a bola!