domingo, 8 de maio de 2016

Microestória de amor

Nunca se sabe quando é amor. Mas o amor sempre sabe. Quando foi mesmo a primeira vez que a vi? Não sei. Talvez encostada no mesmo balcão de bar, talvez ao cruzar as mesmas escadas da faculdade, talvez sentada na mesa de um café enquanto eu caminhava no fim da tarde ou na noite que a vi flertar com seu futuro ex-namorado. Quando foi a primeira vez que ouvi sua voz? Talvez ela pediu um isqueiro numa noite de chuva e samba, talvez quando ela apresentou um trabalho num seminário da faculdade ou talvez numa vídeo-reportagem sobre uma marcha pelos direitos humanos. A primeira vez que a toquei foi num sonho, meu braço encostou no dela, estávamos deitados no chão, um ao lado do outro, sem nunca nos termos apresentado; quando senti o meu braço no dela, me apaixonei. Assim, sem razões ou com todas as razões se anulando mansamente, assim, arraigada e decididamente forte, assim, clara e maravilhosamente, como um tolo, a-pai-xo-na-do. A resposta também estava ali, num sorriso leve e completo, florescente, alçado pelo olhar mais carinhoso naquela mudez castanha e perfeita, donde se quer ao mesmo tempo ficar pela eternidade e sair correndo, acordar, anunciar como se fora os primeiros raios de sol que a manhã nasceu amorosa, colorida, invencível em sua beleza. Entre o braço dela e o meu, uma ponte ínfima por onde se contrabandearam todos os nossos desejos, um pedaço de chão onde semeou-se o destino, ao rés do qual abriu-se a vitrine de nossos paraísos mais singelos, o gosto pelas frutas amarelas, pelas viagens da América do Sul, pelos museus de arte moderna, o amor pelas Letras e pelo afeto ancestral de todos os cães vira-latas. Mas fora apenas um sonho. Dela eu sabia o nome e a profissão, nada mais. Talvez um pouco mais. Eu sabia de sua preferência por botas e coturnos, calças largas, a sua predileção por mantas de lã, estampa xadrez, chapéus tipo centenário e óculos de armação felina; sabia do seu gosto pelo fogo e pelo vinho; sabia da sedução que lhe incitava os ventos, os cânions, as florestas. Eu sabia do seu jeito de parar com as mãos nos bolsos, de não estacionar os pés, do seu jeito de limpar as lentes sempre sujas do óculos, o jeito de manchar a borda do copo de batom, de sempre tropeçar em alguma coisa e de manter a bagunça sobre a escrivaninha rigorosamente por tempo indeterminado. Talvez ela goste de andar de bicicleta, eu não tenho certeza; mas tenho de que ela adora andar sobre rodas. Talvez ela goste da França, mas eu tenho certeza que ela ama Portugal. Talvez ela goste de Pessoa, mas de Manoel de Barros e Virgínia Woolf ela não escapa. É só o que eu sei.
Nunca se sabe quando é amor. Mas ela soube. Assim que leu este prefácio. Nesse exato momento ela deslizou sobre as rodas que tanto amava, sobre as voltas que a trouxeram até mim. A gente sabe. Mas não sabe ainda. Eu não sei. Mas o amor sabe.      

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