segunda-feira, 29 de junho de 2009

À teu coração desnudado, Baudelaire

Tu já caíste morto. Eu sobrevivo. Mas tua forma ávida segue viva e bela em cada brilho meu. A tua angústia, qual a de uma sol poente, é tenra, e acalma a força soturna que verga meu corpo. Tua sina é o tanto de líquido terrestre que arruina o que se dá deserto em mim, tuas frases gozam, teus medos bocejam, teu sêmem poético vinga. Teus imperativos, teu pudor safado, tuas ordens de amor prostituído, que são tuas dores vomitadas senão o ácido que digere meu arraigado torpor? Tu és, para mim, confinado em tua beleza, a meia-estação, a meia-luz, e a solidão inteira. Tua nudez tem o dom de deixar meu repouso fazer abrigo em tuas revoluções; teus maremotos são melodias vagarosas de ninar. És um indivíduo portentoso - as vestes da tua língua revestem o gosto para a glória -, mas não perde a vez de incitar o amor, a prostituição, feito um mar fingindo-se doce para desaguar e sair de si. Meu caro, não tens preço, pois a moeda que te troca é divina. Teus fantasmas tem sabor, tua loucura... razão, teus punhais e penas e broncas tem amigos, e ainda resta, no subúrbio de teus amores, minha fé no que vem de teu subsolo: um aviso celeste, eterno, banido. Tens meu apreço, gênio querido, e tens também já conquistado o furor da minha pena, a recusa das hostilidades imbecis de nossos tempos, o bom-humor custoso de minha bílis, mísera bílis, em riste, alerta. Somos os cordões austeros e esquecidos do futuro, como sobras do sopro que carrega o tempo, somos as carícias reticentes depois que a amante já dormiu. No fundo, somos movediços, e nos olhos, estranha superfície, nos flagram delicados e ariscos. Qual demônio nos guarda, nos aguarda, nos une? Curioso destino que nos embebeda e mata esse de nos tornarmos o que já somos; essa alegria bandida de dizer, e suportar o adeus dito a si mesmo; a quietude infernal de quem sangra desperto, de quem sonha. Não somos aranhas, somos abelhas turbulentas espalhando o mel de nossas muitas almas. E quantos, embasbacados ao redor de si, dirão que fomos infelizes, ingratos, vadios? Os cálculos divinos parecem mesmo insondáveis; mas as cores de tua lucidez nervosa bordam um quadro exato em mim, o teu ardor ainda canta descontente sob a métrica falha dos meus mistérios... Agora, retorna ao teu silêncio, já caíste morto. Eu: sobrevivo admirado!

Nenhum comentário: