segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A amante

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Texto do livro Os amantes, coletânea de cartas anônimas organizado pela professora de Letras e Literatura Portuguesa, Dorotéia Decamerão, do núcleo de pesquisa literária Oduesp.


Querido M.

não deverei poupar-te de minhas palavras, cobro-me dia a dia o dever de confessar a ti toda a minha verdade, uma verdade bastante dura e triste de ser dita, mas sem o que não posso mais viver tranquila. Há algum tempo, logo extasiada em teus braços, já sofro de um abatimento sôfrego de não estar contente, de imaginar repentinamente tuas calças e camisas vestidas, tua aparência reta de despedida, e teu adeus breve e sem culpa alguma. Sofro com o desejo impune de tua partida, um adeus que de agora em diante, desejo de uma vez por todas que tenha sido o último. A amizade só perdura enquanto dura o desconhecido naquele que se admira, e como um raio, dei por conta que há tempos teus mistérios estavam restritos a tua carne, não me encantavam mais tuas futuras idéias, teus vícios imprevisíveis, tuas surpresas de amante, teus gracejos desconcertantes e coisas do tipo; o único desconhecido que amarrava meu desejo em ti era o limite do gosto dos teus músculos, dos teus olhares sobre mim, do descabido, que como uma luva de cetim, cabia no teu gemido derradeiro. E agora nada, nada investe minha ignorância de ti, as dobras da tua carne parecendo mais lisas do que nunca, eu caio num desespero dormente, sem razões que contrariem o tédio do teu amor. Devo advertir que não existirá sequer a discussão do fim, pois não me encontrarás no quarto e na cama que foram nossos por tanto tempo, parti sem rumo, e lá restarão apenas uma cama desfeita em cuja memória descansa a minha insatisfação, um guarda-roupas vazio, as tuas cartas que não importam mais e o silêncio de um túmulo onde jaz o nosso amor e amizade. Agora e talvez para tristeza tua, não tens mais que justificar desavergonhadamente tuas faltas e atrasos, disfarçar o meu perfume sem disfarce em ti, e beijar tua esposa inssossa sem a mínima vontade de fazê-lo, além dos ares de ladrão covarde e arrependido e da comiseração indecente que tens para com ela. Algum dia, contigo morrerá a pena daninha que tens dela e de ti mesmo, e poderás, assim, descansar sem mérito algum da tua pobreza de espírito. Não culpo a ti de nada que sucedeu entre nós, pois de nada és culpado de ter sido por tão longo tempo como pão e água para mim, dessa miséria também fui cúmplice, e de riquezas na alma andava vazia. Teu desencanto não vem da supressão da indecência em mim, ainda continuo bastante viva e quente, embora teu fogo agora escasso já não alimente mais o meu ardor; meu sonho não é mais simplesmente ter as persianas fechadas e as pernas abertas à espera do teu júbilo egoísta em riste, apenas isso. afora tudo que pude agora dizer, nada espero, abri as janelas, bati a porta, e deixei-te para trás.
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Nota sem valor: o livro não existe,
a autora tampouco, o texto é deste que vos fala.

2 comentários:

Unknown disse...

Trocando em miúdos...

de mau humor disse...

Lindo...impossível não se identificar com algo desse texto. Sofri ao lê-lo.