quinta-feira, 15 de outubro de 2009

deixa a fome comer o nome da carne

meu corpo, noite adentro e alta, é um albergue de ilusões; tão sólido quanto meus suspiros, tão sereno quanto a paciência das punhaladas que vão cuspindo meu sangue em cores fortes, meu pesadume de carne serve de abrigo aos meus sonhos; esse corpo tem um peso estranho, rodiado de melancolia e força, ele persiste ávido nas próprias fantasias: a boca, que dispensa a nuca e ri, como ri a criança no escorregador, ao sentir que falta a gravidade no estômago no mesmo instante em que a pele e os olhos e as extremidades do corpo excitam o próprio ser; essa boca a cair nos ombros de boca aberta, faminta com aquela pele alva e lisa de sossego e mácula, uma brisa torpe aguçando-se na espinha, e o toque redentor de minhas presas salivadas com teu gosto interdito. a fogueira, em noite aberta e livre, queimando aquela solidão mesquinha com gravetos da mais pura liberdade, com faíscas tórridas de silêncio áureo, não o silêncio morto e ainda morno do quarto de dormir, nem o silêncio vivo e berrante das tavernas e esquinas, mas aquele eco dos deuses gritando a vitória do mais breve instante e presente da própria alma, refletida no fogo, ao perfume do mato, ao sabor do vento, com o brilho da noite amarrada às honras da mais nobre das lentes, o fundo esvaziado da mais puta das garrafas, aquela que encharca de vida o agora e já de minha feliz infâmia. a rua, labirinto errante das passadas mais ingênuas e esquecidas, como uma lata quicando sonora até deitar-se morta na sargeta eu ando vadio sobre ela, desvalida e também safada em cada beco tem-se um gole dos segredos dela, assim é serena a intensidade das madrugadas em desabrigo, alentado pelo céu de estrelas; nas janelas das mocinhas mais pudicas e abonadas deixo um recado sincero de esperança: do meu suor não beberás, do meu amor não provarás, do tédio congugal que te espera, morrerás. das calçadas garimpo a riqueza sem matéria do meu reino insone, e como outra coisa não sou que passageiro, desapareço como ópio na última baforada da noite, e então é dia claro que me espera. as dores, pequenas cortesãs que acompanham minha nobreza decaída e semeiam aflitas no seu ventre bandido o meu destino tragado e arredio, seria eu, abandonado por estas ninfas, uma alma sem corpo, hiroshima sem bomba, um vazio sem medo, um credo sem mistérios; é prenhe a sabedoria dessas moças, desfazendo lentamente o meu conforto com carícias assassinas, são elas exímias bailarinas traçando o desenho ébrio da minha tragédia, cantam sempre na despedida uma elegia sem pranto,  deixando no sótão de mim um eu de mim mesmo novo. tudo, assim, é a tempestade do sono, universo sem dono dos sonhos da vida, pequenos faunos dançando na superfície aberta dos cristais verdes que orbitam em mim, e deixam ver a luz do dia morrer fria no eterno retorno do fim. meu corpo, noite adentro e alta, é um cemitério de paixões.

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