quarta-feira, 3 de março de 2010

Desassossego da Virtude (um projeto extinto)

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Eu falo de um limbo meu onde moro de favor agora, e pra mostrar d'aí alguma coisa preciso ser compreendido com a exatidão aquela das formas que as nuvens tem sem não as ter, preciso de fantasia com um pouco da doçura tua, leitor, pra ajudar-me a ser alguma coisa detida no merecimento do teu olhar. Do lado de cá, agora, minhas mãos são garfos e tremores de medo, e tenho esse mesmo medo de não as ter mais tremendo comigo, em mim, sobre mim; então, leitor, por quê não  com teu ardil  agarrar-me e cercar-me e prender-me nas grades translúcidas de uma garrafa bastante curiosa, como fazem com aquelas figuras do diabo, pra que eu seja teu anjo por uma efemeridade, pra que meus demônios não escapem, não nos deixem, não nos separe...

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Por muito tempo preocupado com a vulgaridade, algum sabido trasgozinho deu um salto em mim, derrubou do meu tabuleiro a ultima peça de idealismo (mas nunca se tem a certeza disso) e desviou meus olhos para cima, assim, é a virtude que agora me diverte. Mas não se trata apenas de um revezamento de polos, pretende-se que seja uma transfiguração das próprias coordenadas, sem opostos; a virtude não será refletida, essa coisa de quê não há modelo nem projeto, será cantada, por que não?, coisa que deseja ser sentida em prosa e poesia, ou desfigurada em romance, ou alguma destas linguagens bonitas que se encontra por aí. O pensamento quer-se sem a referência a um outro que não o seu rosto inquieto, a linguagem quer dobrar-se e perder-se de si, e assim, quiçá se re-encontre nova noutro lugar de si, e o sonho vigilante quer dar razão ao enigma sensível das formas. Queria pairar, num voo mágico e calmo, por sobre a manação das palavras, pincelando aqui e ali algum sentido das coisas, e elas, faceiras desse salto imprevisto, respondessem com júbilo o fato de elas descobrirem, assim, um sentido para elas incógnito, que a cada novo chamado elas sorriam com um novo sentido. Mas veja aí, cá estou sem querer a idealizar, tenho que escapar vezes mil dessa mania toda vez que imagino o mundo, ainda mais nessa obrigação de projetar; tenho que secretar o sonho que é daquele que não pode ser, e aquele, que vem a ser o virtuoso somente veste os andrajos de um anti-projeto. A única coisa perfeita aqui é esta de dizer que não se pode fazer o que está inevitavelmente sendo feito, como um brilho nos olhos da necessidade.

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A virtude. Que coisa será isto que tanto encanta o ainda nada escrito que deseja ser, e teima em ceder à força dos homens? Porque às vezes ousamos o que não somos, e praguejamos deus e o mundo, por conta disso é que não somos virtuosos. Quisera o deus que maneja a eternidade ter havido, em tempos já idos, um pensador que num dia deu-se conta que tarefa maior de sua obra e de sua vida não haveria de ser outra que tornar-se o que se é; pois este arauto dionisíaco, tirando tal segredo não se sabe donde, deu cor às cinzas do meu crepúsculo. Que alegria exigir de mim, do presente até as reticências do existir, que leve uma vida para ser o que sou sem sabê-lo, uma esfinge de si para si propugnada no admirável espelho daquele mistério. Então que topei a parada, balançado em minha sandice. Um pesar alegre em descobrir aquele vazio da completude esvaziante da vida, eu que andava descontente com aquele vão sem fim que me seguia de dentro, agora andava mais feliz com o meu não ser que nada mais é que já ser além de si. Se o pão é o que se tem sobre a mesa, não imaginar o vinho que inexiste, se for o vinho, não querer o pão que está em lugar nenhum; se no peito pulsa um rebento de dor, não querer o bálsamo impossível, se houver paz de espírito, não sonhar com armagedão. E nada disso diz-se com a lábia da resignação, pois há fortaleza em não querer-se o que se não é, ao revés do resignado, que não é precisamente o que gostaria de sê-lo. Este último afirma a contingência e vive de suas faltas, o outro vive a necessidade e afirma a sua finitude. A virtude é uma estranha identidade de si consigo mesmo onde a igualdade é assinalada por um vir a ser outro de si mesmo, identidade do desejo e da potência na finitude do nosso ser, quem nos dera assaltar com poesia armada essa lógica do absurdo?

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E não deve haver virtude sem um medonho elixir da consciência, pois não há de ser virtuoso um espírito inconsciente, e nisso consiste essa virtude que resolvi devanear na própria carne. É como chegar em casa e ter sido abandonado por tudo que se ama;  no meio do susto e do esmorecer das pernas, não correr, não tombar, não morrer, mas vidrar-se no abandono, relevar tudo o que teria de ser, acolher a própria queda com a mesma calma do destino, crer na imponderável razão dos desencontros; qual um músculo teso feito ferro, o paroxismo da consciência faria terminar com descanso o seu exagero feliz. Uma consciência absurda faz coincidir nosso frágil quinhão de ser com a fatalidade divina de todas as coisas, o que nos torna o que somos, parte e também arte da eternidade... Algum dia um filósofo dirá que a perfeição é o mesmo que a existência, o que certamente torná-lo-á o rei dos filósofos, um senhor da alegria, um elogio vivo de todo acontecer, um experimentador das volúpias da razão, alguém perseverante no próprio ser e cuja potência não é algo mais do que isso, um esforço virtuoso da mente para pensar e do corpo para sentir. Se este dia vingar, terei encontrado uma igual invenção de mim, e da minha inescapável solidão ecoará um silêncio da mais bruta felicidade, pois terei achado um amigo eterno, outro átomo divino, outro canto epífano, terei encontrado meu último encontro ante uma beatitude sem mim. Enquanto não chega este dia, eu finjo tê-lo alcançado!

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E esta virtude que finjo tão certamente não ser fingimento, como a encontro? O desassossego é o Sancho Pança da minha alma. Se para ser hei de devir e outra coisa não sou que viandante de mim, não posso quedar-me sossegado. A inquietude, no entanto, há de gostar da mesura e de alguma sutil monotonia, meu desassossego não é frenesi, mas um devir virtuose sem afetação. Como que há um lago profundo dentro de mim, nele há muita vida que dispensa minha aceitação, e como não renego nem vida nem profundeza nem líquido que sou, deixo estar ali os monstros no viveiro de mim, mas não cultivo quaisquer agitação edificante desses meus próprios outros. Meu desassossego não é nenhuma epopeia, nenhuma novela de cavalaria ou amor romântico, nada disso, é um devaneio por demais entediante no mais das vezes, feito spleen que só se diz com pequenos poemas em prosa. Eu sofro de delicadeza e todo arrebatamento a de vir a mim sereno, ele não deixa de arrebatar e eu não deixo de o sentir, e desassossegado eu sigo à risca uma certa arte da moderação como que aguçando sempre mais o faro para com aquilo que torna ainda mais firme e forte meu desassossego. E nada disso faria graça se tudo que toca o desassossego da virtude não tivesse o lume da beleza, e com ela não caímos outra vez senão no lastro misterioso da própria vida, pois que é a beleza se não um banho de nossa potência sobre as coisas, de nossa afirmação incondicional do que veio a ser, de nossa própria força de existir, a alegria de não voltar atrás e ainda querer tudo uma outra vez: o sabor, o brilho, o encantamento, a saudade aceita, o livrar e deixar livre de si, o término de cada vida, a fragilidade, o ir e vir de nossa tragédia, a réstia que abala nossa escuridão? Um mestre do desassossego diria que vivera “como se batessem com sua própria vida nele” e que fora como “um balde derramado no chão”, este seria uma grande pessoa, talvez afora “não ser nada, teria todos os sonhos do mundo”, serenamente... Vocês o reconheceriam, não é?

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Uma inestimável solidão faz companhia à virtude. Talvez sejamos um singelo polidor de lentes, talvez um andarilho e sua sombra, talvez um caminhante solitário e seus devaneios, ou quem sabe habitemos alguma rua dos douradores, quer isto ou aquilo, não dispensaremos nossa solidão, a solidão que nos permite estender nossa própria pele sobre o resto do mundo e ser tocado por cada coisa. Nada nos redime de sermos únicos, nada sutura o vão que nos separa de todo o resto, mas  de nossa corda melancólica ressoa uma melodia sempre alegre que afaga sem misericórdia a solidão alheia, e também nunca estamos sós quando somos vários. Ser único e não ser o mesmo, contagiar com a própria solidão, cuidar com ternura a distância que nos inteira e reparte, tocar um outro sem nunca ter saído de si, essa sensação de tudo é sonho na realidade de mim, nada falta quando sou ninguém ainda sendo único; se esse baile de contradições tocar em ti é porque cheguei no limite da solidão, é porque escreveste em ti o que eu escrevia em mim e num instante fomos dois solitários distraídos num mesmo traço do tempo, tua solidão encontrou a minha. A virtude também sabe distrair a própria solidão, povoando a solidão dos outros com o desejo da virtude, isto seria uma solidão admirável.

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Que essas maneiras virtuosas de levar a vida não se ensinam é coisa que se pode aprender. Não se vai dizer a um pobre homem que seja o que sua pobreza não deixa ser, ou que o néscio desista da sua estupidez, como se fosse simples desistir de si, e para tornar-se o que se é é mister saber abandonar-se como quem termina um amor-próprio. Com tamanha despretensão meu lirismo anda de mãos dadas, se convier à tua alma ver a beleza onde meus olhos e meus sonhos dizem onde ela se encontra então seremos dois apaixonados sem obrigações e o que há de vir virá de nossa liberdade. Diria um poeta admirando o lance de dados de outro que as palavras deste “mais do que provocar a compreender, intimam a devir”, e com isso ele teria dito tudo em pouco da virtude desse espírito. Somos de uma ordem bem pouco numerosa, pois já foi dito que vivemos bem com a solidão, o que nos faz com muito gosto convocar o outro à sua e dela colher os frutos, não temos lições universais e nosso púlpito não está num ponto sobrenatural, somos bem simples e nossos abalos sísmicos são modestos, e com esse caráter humilde é que podemos bem disfarçar nosso tesouro e raridade, enfim, não somos profetas, somos poetas. Não extraímos tampouco do nosso poço sem fundo apenas divertimento, por mais lúdica que seja nossa miséria; havendo algum desejo em nosso penar e escrevedura esse é somente o de não devolver o rosto de quem por sobre o nosso corpo escrito despende a sua atenção, mas também não se trata de defletir um rosto que não é o seu, jamais cantando a fortaleza ao fraco ou a coragem ao covarde, mas desfigurando o rosto em nome de um rosto próprio que não tem traços gerais e sim um desfalecimento universal, o covarde então voltará à sua própria covardia com mais coragem sem sabê-lo e o fraco com mais força sem se assoberbar. E se nada mudar, não haveremos de nos ressentir, pois a mudança não é nossa intenção, mas um estado feliz de nosso ser; continuaremos com os pés no chão de nós mesmos, covardes ou fracos, e isso já está ao nosso gosto, posto que nossa consciência febril não nos deixa congelar no alheamento vulgar e mais dia menos dia estaremos novos outra vez.

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De onde vem o chamado da virtude? Pois até isso me atrevo a responder - não parece atrevimento? -  inventando que isso vem da admiração. E como me chega a suspeita de que a etimologia verdadeira não servirá ao meu gosto e propósito, tenho uma melhor na cabeça. Admirar é olhar indiretamente toda concretude e também abstração, e nosso espírito assim como nosso rosto, por natureza, tem dois olhos, um que enxerga a coisa e outro que a vê de muito adiante, como se a tivesse antes de vê-la carregado até o infinito para vê-la melhor, daí nosso ficar embasbacado quando admiramos, pois nosso entendimento obtuso não vê que os olhos de verdade permanecem ali, enquanto aqueles outros divinos foram dar uma passeio pelo universo carregando a coisa na garupa, e não demora algum vizinho vai lhe tocar o ombro e perguntar que fazes tu ali, olhando para o nada, nem sabe ele que você vivia quase tudo de uma vez. E quando a admiração te fez vítima, desde que não descansaste também daquela demoníaca consciência, saberás que ali encontraste um convite para sempre, e quererás até a morte repetir o passeio. O texto fabuloso, o homem elegante, a elegância desse homem sendo fabulada até o silêncio, até o grau zero, onde resta somente a busca do homem e do texto, onde só resta repetir o que se admira e se deseja, repetir o convite da virtude, chegar a si quando se é tão somente dédalo e sorte, quando se é por trás de tudo quase nada, delicada metamorfose da finitude.

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Não contenta à virtude jorrar de si uma força oceânica, é preciso ser duto e disciplina, ou de maneira clara e distinta, ser como causa eficiente para si. Deter-se sobra a largura de nossos meios e declinar da inspiração fugaz, por mais genial que pareça, pois com isso tão somente ganharemos um prêmio mas seremos incapazes de deixar uma herança. Assim como diria um poeta sobre o mesmo poeta de antes, fazer de si “um virtuose dessa disciplina de pureza, o ser que se aplica a exercitar infalivelmente aquilo que tem em si de mais raro”. Não deambular na vida conforme os ventos da fortuna passivamente; essa vulgaridade das paixões que nos torna omissos ao próprio destino, essa facilidade dos sentidos que nos arremessa para sempre mais distante de nós mesmos, distantes de nosso abismo primeiro, sempre a responder na ponta da língua o que nos acomete, sinto amor, sinto ódio, isto é belo, aquilo é tristeza, coisa mais baixa essa certeza imediata do sentimento que revela tão somente que na pele não existem dobras, que não há esconderijos dentro de si, que nunca tornar-se-á o que é porque já é, e isso não pode ter nada da virtude, pois não há poesia sem mistério assim como não há tragédia sem destino e tampouco virtude sem distância essencial, sem a ponte que nos convida a atravessar até nós mesmos: nós que chegaremos lá pra encontrar as pistas de um deserto. Saber precisar e dizer com tanta clareza o desconhecido que a ignorância advinda não tenha outra cor que a da satisfação, pois não faremos um do outro, mas seremos tão claros e desconhecidos ao mesmo tempo, e nada será fácil e imediato como as linhas retas mas virá talvez a luminosidade de um labirinto que incita a aceitar a vida cada vez com mais contentamento, pois, como diria aquele rei dos filósofos que imaginamos, “a felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude”.

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De tudo o que se disse nada há de ter certeza, pois quem escreve só escreve para inventar uma certeza até que o ponto anuncie o fim. A virtude da qual sou indivíduo sonhado não é a de um homem qualquer, pois tal homem nem existe, é a virtude do homem que escreve a própria vida, e quem escreve sabe que não encontra o fim do arco-íris da linguagem e inventa ela própria a cada vez que diz. Tudo é falha entre um pensamento e a palavra, mas não ousaria uma delonga pelo caminho das pedras da metalinguagem. O que digo é sempre um outro do que quero porque querer é sempre dizer sem sabê-lo. E vou mentir de mim mesmo com tanta paixão que um dia havereis de acreditar, que fui homem virtuoso, que escrevi minha própria vida, que desconhecestes cada vez melhor o que eu disse de mim mesmo e admirastes cada vez mais a proximidade junto à minha distância. Feito o mar, agora é hora da maré levar-se-me as águas para longe, mas hei de voltar a vós, e por que não desejais logo admirar o meu vai e vem sem fim, minha orla gigante que vos acolhes e meus movimentos calmos que vos deixai brincar e rir?
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Um comentário:

Talita disse...

"Algum dia um filósofo dirá que a perfeição é o mesmo que a existência, o que cetamente torná-lo-á o rei dos filósofos, um senhor da alegria, um elogio vivo de todo acontecer"

até parece que esse texto surge novamente hoje para falar junto com o que dizem ter saído da boca/mão de vinícius: "é melhor viver do que ser feliz"