quinta-feira, 11 de março de 2010

Meu conto de fadas

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Meu pai ainda estava vivo quando usei a palavra óbvio com propriedade, pela primeira vez. E nada era tão óbvio assim. Meu pequeno corpo não contava dez anos, a tarde talvez fosse uma primavera, a sombra era obra da copa de um inesgotável jambolão, todos vestiam a máscara de um dia feliz. Tirou a chave do caminho? É óbvio que sim! Surpreendi. Não tinha nem dez anos e alguma coisa me pareceu óbvia. Ele sorriu. Eu entendi. Nada era óbvio. O tempo tratou de furtar minha pequena certeza. Há de ser assim, talvez, quando o verde alegre que espelha os olhos de primavera de uma criança se avermelham com o medo. O telefone soava, eu brincava de brincar do lado de fora, mais ninguém em casa, a chamada poderia importar, eu deveria atender, meu arredor seguia brincando, eles eram apenas crianças, não sabiam dizer que era óbvio não querer nada além do corpo feliz da brincadeira, mas sorriam com obviedade, eu temia, tremia, gemia, vidrava, morria mais uma vez. Atende o telefone! Não consigo. Já estou indo. Entrava pela porta dos fundos, atravessava o corredor, todos os cantos escuros atravessavam por mim com algum grito, todos os lados diziam depressa!, ele vai estar lá... E com a velocidade precisa para fugir, com a angustia devida para me expulsar desesperado daquele horror, com a mesma velocidade e angústia minhas pernas negavam um passo para trás e desafiavam o próximo umbral, é você quem vai estar lá... Depois de usado, dispensava o telefone inútil sobre a mesa, restavam os mesmos quartos e cantos e gritos para vencer outra vez, ninguém estava ali, nem ele nem eu, dez anos em dez minutos sufocados por um eterno estampido de dez milésimos de segundo, atrás de cada porta passada a loucura me olhava sem tocar, por que não sucumbia, por que não desistia, por que não enlouquecia com ela? Nada era óbvio. Saía daquela tumba correndo, fingindo a naturalidade infantil de correr sem medo, à noite eu voltaria àquela escuridão, havia naqueles quartos pesadelos que não dormiam, noites que não passavam, mas havia o lado de fora, havia o ar lá fora, fora de mim, onde se ouviam outros gritos, vêm!, vamos jogar!, quem era?! Eu olhava a janela da sala onde estava o telefone, via pela fresta os olhos que me esperavam lá dentro, eu os encarava o mais profundamente e respondia, ninguém. Eu sorri. Ele entendeu.
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