domingo, 16 de maio de 2010

a f(r)esta

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conhecidos um do outro há tanto tempo, eu de mim mesmo, as vezes nem sei o que dizer-me em dias nos quais não se abre a janela, não se percebe a luz do sol nem se nos desenha a linha de um horizonte. dias em que nos encontramos encerrados, e nos havemos com a nossa própria penumbra. tento, como se não soubesse das regras desta sestrosa brincadeira, a de encontrar algum novo sentido para isso tudo que se chama pequena solidão dos homens. percorro algumas linhas de Cortázar, procuro a calma na melodia de Ramil, tento não correr ou fugir ou esquivar-me do insolúvel presente, do indigesto presente que se embrulha em meu estômago, da incontornável força que nos acompanha taciturna e diariamente e que, amiúde, não nos apercebemos, a gravidade, de cada ideia que insiste em tornar-se real e se agrava em nossa memória, o pesar do corpo e o enrugar das mãos frias e rígidas. que nem todos caiam nessa armadilha délfica é um problema que não me diz respeito, por mais interessante que me pareçam aqueles seres em que predominam os fatos ao invés das ideias, e para os quais os sapos eruditos acreditam que se tratem de seres vazios, e obviamente se enganam em seu equivocado coaxar, pois estes seres factuais a que me refiro são tambores cujos sons estão repletos de realidade. insisto, porém, nos musgos e viscosidades de minha recalcitrante existência crocodiliana, entre a resistência silenciosa e paciente das águas e a solidez arenosa de um leito embarrado de pensamentos. o couro que separa o mais frágil de mim e o resto do mundo é grosso, a gravidade em mim é demasiada, arrastando-me sob uma tonelada de instintos e lampejos filosóficos tão anacrônicos quanto a minha espécie. mas nada em mim seca e careço cuidadosamente, diria mesmo carinhosamente, em manter meus olhos bastante úmidos. em toda clausura é essencial flagrar as aberturas, deflagrar a invisível escamação que nos socorre e com a qual desnudamo-nos divinamente com a possibilidade de uma animalesca renascença, pois, dessa íngreme desolação que agora me ocorre, acabo de furtar-me inteiramente sóbrio, apesar da dor e do enjoo, no exato momento em que, com as mãos estarrecidas, achava-me prestes a desesperar-me, a clamar a deus que desistisse desta tortura, e nesse instante, fez-se um sentido, em nenhum outro lugar senão na palma estendida das minhas mãos, estava ali, naquelas linhas imperfeitas nas quais nada lamentava, nada hesitava, e nas quais algo se desenhava como o horizonte que até então se escondia, eram simplesmente as ferramentas da minha alma que ali luziam, o artesanato da minha própria solidão que ali se deslindava, eu encontrara, finalmente, o instante... o murmúrio ancestral de todos os sacrifícios, meu sangue quente banhando as mãos de meus próprios guerreiros, minha carne agora farta sobre a mesa, e o delírio de uma soberba refeição, a do instante devorando fantasmas.

Um comentário:

Guilherme Franco disse...

sempre te esperei
e nem preciso ler
porque mesmo sem aprender
nunca esqueci de ti