quarta-feira, 12 de maio de 2010

sem título

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um velho neste novo mundo. um passageiro experimentando a passagem. muito velho, sabe muito pouco de agir, perde muito tempo em reflexões. muito velho, não enseja nos músculos e nervos a vontade de sair; tampouco despenderia alguma energia para convidar qualquer um a se retirar dali. era sua morada já há muito tempo, a madeira podre da varanda frontal apodrecia amigavelmente já há muito tempo com ele, um dos dois haveria de enciumar-se bruscamente só de imaginar alguma renovação repentina em alguma das partes conjugalmente envolvidas. paus podres suportando telhas velhas, pernas velhas suportando miolos podres, cada um a seu tempo, no seu ritmo, na sua condição apodrecedoramente suportável. o gato raramente andava, apenas a sua cola, já que sempre foi um outro bicho colado ao gato não se sabe por quê; lembra muito os traços da cola dos macacos, porém, muito mais estúpida que esta, a cola no gato não tem razão alguma. já o cão é gente muito diferente, tem todas as razões, é um ser humano perfeito, é capaz de babar e rodear em busca do próprio rabo com toda a autenticidade do mundo, tudo no cão é alienado, nem um vestígio de consciência para assegurar sua vulgaridade, cada coisa acertadamente ao seu tempo mesmo que os tempos na ordem das coisas se invertam. ele pode dar de focinho no pote de água - maravilhoso transtorno - quando o mais preciso era abocanhar a sua bola de estimação, e nada altera a perfeição do seu instante, como nem duas mil explicações humanas poderiam explicar, é como se o cão ao cair de cara na água dissesse a si mesmo era exatamente isso que eu gostaria de fazer. o velho não desfruta do mesmo contentamento, não quer sair, não quer que ninguém o deixe, se deixar está bem, se não deixar, pois bem, assim está. a bola acaba de tocar o gato, lá vem o cão, o cão bate no gato - era exatamente o que o cão gostaria de fazer - o gato não se mexe, a cola sim, a bola também, cai na boca do cão, que segue ritmo canino da sua perfeição. no velho desperta a vontade de um trago de mate, ah, a surpresa, o velho ainda tem vontade, ele imagina o mate, saliva sob a imagem, tem ímpetos quase reais de levantar-se, e quase involuntariamente sente os próprios pés pressionarem o chão, por deus!, assim ele conseguirá! lá vem a bola, logo, vem também o cão, a bola pára na cadeira, o cão certamente não pára, logo, o cão acerta a cadeira - porque ele não quisera outra coisa -, e o velho explode num berro coberto de vontade, mas que cão!, maldito, não se pode mais sossegar, estou cansado, não quero mais nada. silêncio. o grito quase distraiu o próprio cão de sua perfeição, quase nada, logo retornou a ela, disse au-au, apoiou as duas patas bem à frente, a cabeça balançando, a língua pra fora, a bunda empinada, e zapt, em disparada atrás da bola, lá vai ela, ah não, no galinheiro não! a cola do gato só a espiar, o velho a cochilar, o mate a esperar, praticamente nada a acontecer, maldição, que frenesi! há de passar, sem preocupações. e finalmente, algo inexplicável, o pinheiro deixa cair uma de suas pinhas em cima das telhas podres da varanda, um caco se desprende, acerta matematicamente a cola que, desesperadamente, acorda o gato que está colado nela, o velho se assusta e sem pensar, maldito velho!, sem pensar, acaba por ficar em pé, mas a madeira da varanda está podre, o velho abre um buraco com a pressão dos pés e cai, tenta segurar-se no corrimão, mas a madeira da varanda está podre, ora, qual parte não se entende! maldição! o corrimão se parte com o peso do velho podre, e o poste que segurava o teto da varanda podre por seguinte também se parte, e todo o teto podre cai por conta de uma pinha bem em cima do pobre velho! a casa toda cai! o pinheiro, entusiasmado, quase se joga ao chão! o velho morre, a cola morre, o gato colado nela também morre! até que... enfim... sossego! ah, não! lá vem a bola!

2 comentários:

dansesurlamerde disse...

muito bom!!

beijo.

Talita disse...

o velho,
ávido de vida
mas vazio de movimentos,
é decisivo quando, nem resolve,
mas se move...

faz tempo que eles andam bonitos, os teus textos, diria cada dia mais... mas esse é tão outro tu sem deixar de ser velho dani, que emociona ver.